Ibn Arabi (Fusus): Adão (tr. Burckhardt)

Veja também a apresentação por parágrafos, com outras traduções e anotações, a partir do Capítulo I, §1

Deus quis ver as essências1 de Seus Nomes muito perfeitos, que o número não saberia esgotar – e, se você quiser, pode igualmente dizer: Deus quis ver Sua própria Essência2 – em um objeto global, que, tendo sido dotado de existência3, resume toda a Ordem Divina4 a fim de manifestar por aí Seu mistério para Si-mesmo5. Pois a visão6 que tem o ente7 de si-mesmo em si-mesmo não se assemelha àquela que lhe proporciona uma outra realidade da qual ele se serve como de um espelho: ele aí se manifesta a si-mesmo sob a forma que resulta do “lugar” da visão; esta não existiria sem o “plano de reflexão” e o raio que aí se reflete. Deus criou a princípio o mundo inteiro como uma coisa amorfa8 e desprovido de graça9, e similar a um espelho que ainda não foi polido10; ora, é uma regra da Atividade divina não preparar nenhum “lugar” sem que este não receba um espírito divino, isto que é expresso [no Corão] pela insuflação do Espírito divino em Adão11; e isto não é outra coisa [de um ponto de vista complementar ao precedente] senão a atualização da atitude que possui tal forma, anteriormente disposta, a receber a efusão12 inesgotável da revelação13 essencial. Há então (fora da Realidade divina) apenas um puro receptáculo14; mas este receptáculo provem ele-mesmo da “Efusão santíssima” (quer dizer, da manifestação principial, metacósmica, onde as “essências imutáveis” são divinamente “concebidas”, antes de sua aparente projeção na existência relativa15). Pois a realidade inteira, de seus primórdios até seu fim, vem de Deus unicamente, e é para Ele que ela retorna16.” Assim, então, a Ordem divina exigiu o polimento do espelho do mundo; e Adão tornou-se a própria luz desse espelho e o espírito dessa forma17.

Quanto aos Anjos (dos quais é questão no relato corânico da criação de Adão18), representam certas faculdades desta “forma19 do mundo, que os sufis chamam o “Grande Homem” (al-insan al-kabir), de modo que os Anjos são para esta aquilo que as faculdades espirituais e físicas são para o organismo humano20. Cada uma dessas faculdades (cósmicas) se encontra como velada por sua própria natureza; ela não concebe nada que seja superior a sua essência (relativa); porque há nela qualquer coisa que pretende ser digna de alto escalão e de toda morada elevada próxima de Deus. Isto é assim porque ela participa (de uma certa maneira) na síntese divina (al-jam’-iyat al-ilahiyah21) que rege aquilo que mantém-se, seja ao lado divino (al-janab al-ilahi22), seja ao lado da Realidade das realidades (haqiqat al-haqaiq23), seja ainda – por este organismo, suporte de todas as faculdades – à Natureza Universal (tabi’at al-kull24); esta engloba todos os receptáculos (gawabil) do mundo, de seu cimo a seu fundo25. Mas isto, a razão discursiva não o compreenderá, pois esta ordem de conhecimento depreende-se unicamente da Intuição divina (al-kashf al-ilahi); é por ela somente que se conhecerá a raiz das formas do mundo, enquanto são receptivas a respeito dos espíritos que o regem26.

Assim este ser (adâmico) foi denominado Homem (insan) e Representante (khalifah) de Deus. Quanto a sua qualidade de homem, ela designa sua natureza sintética (contendo virtualmente todas as outras naturezas criadas) e sua atitude a abarcar todas as Verdades essenciais. O homem é para Deus (al-haqq) aquilo que é a pupila para o olho (a pupila se chama em árabe “o homem no olho”), a pupila sendo aquilo pelo qual o olhar se efetua; pois por ele (quer dizer pelo Homem Universal) Deus contempla Sua criação e lhe dispensa Sua misericórdia. Tal é o homem ao mesmo tempo efêmero e eterno, ser criado perpétuo e imortal, Verbo discriminante (por seu conhecimento distintivo) e unificante (por sua essência divina)27. Por sua existência, o mundo foi finalizado. Ele é para o mundo aquilo que a armação é para o anel: a armação porta o selo que o rei aplica sobre os cofres de seu tesouro; e é por causa disto que o homem (universal) é denominado o representante de Deus, do qual salvaguarda a criação, como salvaguardam-se os tesouros por um selo: enquanto o sinete do rei se encontrar pousado sobre os cofres do tesouro, ninguém ousará abri-los sem sua permissão; assim o homem se vê confiar a salvaguarda divina do mundo, e o mundo não cessará de ser salvaguardado enquanto este Homem Universal (al-insan al-kamil) habitar nele. Não vês portanto que quando ele desaparecer e que for retirado os cofres deste mundo aqui de baixo, nada daquilo que Deus aí conservava não restará, e tudo aquilo que eles continham sairá, cada parte reencontrando sua parte (correspondente); o todo se transportará no outro mundo, e (o Homem universal) será o selo sobre os cofres do outro mundo perpetuamente.

Tudo aquilo que implica a “Forma divina”, quer dizer todo o conjunto de Nomes (ou Qualidades universais), se manifesta nesta constituição humana, que, deste fato, se distingue (das outras criaturas) pela integração (simbólica) de toda a existência. Daí o argumento divino condenando os Anjos (que não viam a razão de ser nem a superioridade intrínseca de Adão); guarde isto, pois Deus te exorta pelo exemplo de outro, e olha por onde o julgamento atinge aquele que ele atinge. Os anjos não realizaram aquilo que implica a constituição deste representante (de Deus sobre a terra), e não realizaram também aquilo que implica a adoração essencial (dhatiyah) de Deus; pois cada um só conhece de Deus aquilo que infere de si-mesmo. Ora, os Anjos não têm a natureza integral de Adão; eles não realizam portanto os Nomes divinos cujo conhecimento é o privilégio desta natureza e pelos quais esta O “louva” (afirmando Seus aspectos de Beleza e de Bondade) e O “proclama Santo” (em atestando Sua Transcendência essencial); eles não sabem que Deus possui Nomes que escapam a seu conhecimento e pelos quais eles não saberiam portanto Lhe “louvar” nem O “proclamar Santo”.

Eles foram vítimas de sua própria limitação quando disseram, a respeito da criação (de Adão sobre a terra): “Queres tu pois aí criar alguém que semeia a corrupção?” Ora, esta corrupção, o que é ela senão a revolta, logo precisamente isto que eles manifestam eles-mesmos? Aquilo que eles diziam de Adão se aplica a sua própria atitude para com Deus. Por conseguinte, se tal possibilidade (de revolta) não estivesse na sua natureza, eles não a teriam inconscientemente afirmado a respeito de Adão; se eles tivessem tido o conhecimento deles mesmos, eles teriam sido eximidos, da parte deste conhecimento, dos limites que eles sofreram; eles não teriam insistido (na sua acusação de Adão) até tirar vaidade de sua própria “louvação” de Deus e daquilo pelo qual eles O “proclamavam Santo”, enquanto que Adão realizava os Nomes divinos que os Anjos ignoravam, de modo que nem sua “louvação” (tasbih) nem sua “proclamação da Santidade divina” (taqdis) não eram parecidas àquelas de Adão.

Isto, Deus nos descreve para que estejamos prevenidos e que aprendamos a justa atitude para com Ele – exaltado seja Ele! – livres de pretensão a respeito daquilo que tenhamos realizado ou apreendido para nossa ciência individual: por conseguinte, como poderemos pretender possuir alguma coisa que nos exceda (em sua realidade universal) e nós não conheçamos (essencialmente)? Sejais pois atentos a esta instrução divina sobre a maneira pela qual Deus castiga os mais obedientes e os mais fiéis de Seus servidores, Seus mais próximos representantes (segundo a hierarquia geral dos seres).

Mas retornemos agora à Sabedoria (divina em Adão). Podemos dizer a seu respeito que as Idéias universais (al-umur al-kulliyah)28, que não têm evidentemente existência individual como tal, não são menos presentes, inteligivelmente e distintamente, no mental; eles permanecem sempre interiores em relação à existência individual, mas determinam tudo o que pertence a esta. Além do mais, aquilo que existe individualmente é apenas (a expressão de) estas Ideias universais, sem a qual estas últimas cessam portanto de ser nelas mesmas puramente inteligíveis. Elas são portanto exteriores enquanto determinações implicadas na existência individual e, por outro lado, interiores enquanto realidades inteligíveis. Tudo que existe individualmente eleva-se destas Ideias, que permanecem no entanto inseparavelmente unidas ao intelecto e não saberiam manifestar-se individualmente de maneira a sair de sua existência puramente inteligível, quer se trate da manifestação individual no tempo ou fora do tempo29; pois a relação entre o ser individual e a Ideia universal é sempre a mesma, quer este ser esteja ou não submetido à condição temporal. Somente a Ideia universal assume por sua vez certas condições próprias às existências individuais, seguindo as realidades (haqaiq) que definem estas mesmas existências. Assim é, por exemplo, da relação que une o conhecimento e o conhecedor ou a vida e o vivente: o conhecimento e a vida são realidades inteligíveis, distintas uma da outra; ora, nós afirmamos de Deus que Ele é conhecedor e vivente, e nós afirmamos igualmente do Anjo que ele é conhecedor e vivente, e dizemos isto do mesmo modo do homem; em todos estes casos, a realidade inteligível do conhecimento ou aquela da vida permanece a mesma, e sua relação ao conhecedor ou ao vivente é cada vez idêntica; e, no entanto, diz-se do conhecimento divino que ele é eterno e do conhecimento do homem que ele é efêmero; existe portanto alguma coisa nesta realidade inteligível que é efêmera por sua dependência a respeito de uma condição (limitativa). Ora, considere esta dependência recíproca das realidades ideais e das realidades individuais30: do mesmo modo que o conhecimento determina aquele que dele participa, – pois o chamamos conhecedor, – do mesmo modo, aquilo que é qualificado pelo conhecimento determina por sua vez o conhecimento, de modo que ele é efêmero em conexão com o eterno; e cada um dos dois lados é, em relação ao outro, ao mesmo tempo determinante e determinado. É certo que estas Ideias universais, apesar de sua inteligibilidade, não têm, como tais, existência (própria), mas somente uma existência primordial; do mesmo modo, quando elas se aplicam aos indivíduos, elas nisto aceitam a condição (hukm) sem todavia nisto assumir a distinção nem a divisibilidade; elas são integralmente presentes em cada coisa qualificada por elas, como a humanidade (a qualidade de homem), por exemplo, está presente integralmente e cada ser particular desta espécie sem sofrer a distinção nem o número que afetam os indivíduos, e sem cessar de ser nelas mesmas uma realidade puramente intelectual.

Ora, como há dependência mútua entre aquilo que tem uma existência individual (ou substancial) e aquilo que não tem e é apenas, a bem dizer, uma relação não-existente31 como tal, é fácil conceber que os seres estão religados entre eles; pois neste caso, há sempre um termo médio, a saber a existência como tal, enquanto que no primeiro caso a relação mútua existe apesar da ausência de um termo médio.

Sem dúvida, o efêmero só é concebível como tal, quer dizer na sua natureza efêmera e relativa, em relação com um princípio do qual ele tem sua própria possibilidade, de sorte que ele não tem o ser em si-mesmo, mas o tem de um outro ao qual está ligado por sua dependência. E é certo que este princípio é em si-mesmo necessário, que ele é subsistente por si-mesmo e independente, no seu ser, de toda outra coisa. É este princípio que, por sua essência mesma, confere o ser ao efêmero que dele depende.

Mas já que (o princípio) exige da parte de si-mesmo (a existência) do (ser) efêmero, este mostra-se, sob esta relação, (não somente possível mas também) “necessário”. E já que o efêmero depende essencialmente de seu princípio, é preciso também que ele apareça sob a “forma” (qualitativa) deste último, em tudo aquilo que ele tem dele, como os “nomes” e as qualidades, a exceção todavia da autonomia principial que, ela, não é aplicável ao ser efêmero, embora este seja “necessário”; é que ele é necessário em virtude de um outro, não de si-mesmo.

Dado que o ser efêmero manifesta a “forma” do eterno, é pela contemplação do efêmero que Deus nos comunica o conhecimento Dele-mesmo; Ele nos diz (no Corão) que Ele nos mostra Seus “signos” no efêmero (”Nós lhes mostraremos Nossos signos nos horizontes e neles mesmos… Corão XLI, 53). É a partir de nós mesmos que concluímos com Ele; nós não Lhe atribuímos nenhuma qualidade sem ser nós mesmos esta qualidade, a exceção da autonomia principial. Desde o momento que nós O conhecemos por nós e a partir de nós, nós Lhe atribuímos tudo aquilo que nós atribuímos a nós mesmos e é por isto, por outro lado, que a revelação nos foi dada pela boca dos intérpretes (quer dizer dos profetas) e que Deus Se descreve para nós por meio de nós. Em contemplando-O, nós nos contemplamos, e em nos contemplando, Ele Se contempla, embora sejamos evidentemente numerosos quanto aos indivíduos e aos gêneros; nós estamos unidos, é verdade, em uma só e mesma realidade essencial, mas não menos existe disto uma distinção dos indivíduos, sem o que, por conseguinte, não existiria multiplicidade na unidade.

Do mesmo modo, embora sejamos qualificados, sob todos os aspectos, pelas qualidades que pertencem a Deus mesmo, há (entre Ele e nós) uma diferença certa, a saber nossa dependência a Seu respeito, para aquilo que é do Ser, e nossa conformidade a Ele, em razão de nossa possibilidade mesma; mas Ele é independente de tudo aquilo que faz nossa indigência. É neste sentido que se deve entender a eternidade sem começo (al-azal) e a ancianidade (al-qidam) de Deus, que abolem portanto a primazia (al-awwaliyah) divina significando a passagem da não-existência à existência embora Deus seja o Primeiro (al-awwal) e o Último (al-akhir), Ele não pode ser chamado o Primeiro no sentido temporal, pois Ele seria então o Último segundo o mesmo sentido; ora as possibilidades de manifestação não têm fim: elas são inesgotáveis. Se Deus é chamado o Último, é que toda realidade pertence finalmente a Ele, depois de ter sido rendida a nós: Sua qualidade de Último é essencialmente Sua qualidade de Primeiro, e inversamente.

Nós sabemos também que Deus Se descreveu Ele-mesmo como o “Exterior” (al-zahir) e como o “Interior” (al-batin), e que Ele manifestou o mundo ao mesmo tempo como interior e como exterior, a fim que nós conheçamos o aspecto “interior” (de Deus) por nosso próprio interior, e o “exterior” por nosso exterior. Do mesmo modo, Ele se descreveu pelas qualidades da clemência e da cólera, e Ele manifestou o mundo como um lugar de medo e de esperança, para que nós temamos Sua cólera e esperemos Sua clemência. Ele Se descreveu pela beleza e a majestade e nos dotou de temor reverencial (al-haybah) e de intimidade (al-uns). Assim vai de tudo aquilo que se refere a Ele e pelo que Ele se designou. Ele simbolizou estes pares de qualidades (complementares) pelas duas mãos que Ele tende em direção à criação do Homem universal; este reúne nele todas as realidades essenciais (haqaiq) do mundo, em seu conjunto como em cada um dos indivíduos. O mundo é o aparente, e o representante (de Deus nele) é o escondido. É a exemplo disto que o sultão permanece invisível, e é neste sentido que Deus diz Dele mesmo que Ele se esconde sob véus de trevas — que são os corpos naturais — e véus de luz — que são os espíritos sutis32; pois o mundo é feito de substância grosseira (kathif) e de substância sutil (latif).

(O mundo) é para si-mesmo seu próprio véu, de maneira que ele não pode ver Deus do fato mesmo que ele se vê; ele não pode jamais se desfazer por si-mesmo de seu véu, mesmo sabendo que a ele se fixa, por sua dependência, a seu Criador. É que o mundo não participa da autonomia do Ser essencial, de tal modo que não O concebe jamais. Sob este aspecto, Deus permanece sempre desconhecido, pois o efêmero não tem apreensão sobre isto (quer dizer o eterno).

Quando Deus disse a Iblis: “O que te impede de te prosternar diante daquele que Eu criei com Minhas duas Mãos?” (Corão, XXXVIII, 75), a menção das duas Mãos indica uma distinção para Adão; Deus fez assim alusão à união em Adão das duas formas, a saber da forma do mundo (análoga às Qualidades divinas passivas) e da “forma” divina (análoga às Qualidades divinas ativas), que são as duas Mãos de Deus33. Quanto a Iblis, ele é apenas um fragmento do mundo; ele não recebe a natureza sintética em virtude da qual Adão é o representante de Deus. Se Adão não estivesse manifestado na “Forma” d’Aquele que lhe confia Sua representação em relação aos outros, ele não seria Seu representante; e se ele não contivesse tudo aquilo que tem necessidade o rebanho que deve guardar – é dele que este rebanho depende, e ele deve satisfazer a todas as suas necessidades, – ele não representaria Deus para os os outros (criaturas).

A representação de Deus só pertence ao Homem universal, cuja forma exterior é criada das realidades (haqaiq) e das formas do mundo, e cuja forma interior corresponde à “Forma de” Deus (quer dizer à “soma” das Normas e das Qualidades divinas). Por causa disto Deus disse dele: “Eu sou sua audição e sua vista”; Ele não disse: “seu olho e sua orelha”, mas distinguiu as duas “formas” uma da outra34.

Sucede da mesma maneira para todo ser deste mundo sob a relação de sua própria realidade (transcendental); no entanto, nenhum ser guarda uma síntese similar àquela que distingue o Representante; e este apenas por esta síntese excede os outros.

Se Deus não penetrasse de Sua “Forma35 a existência, o mundo não seria; assim mesmo que os indivíduos não seriam determinados se não houvessem as Ideias universais. Segundo esta verdade, a existência do mundo reside na sua dependência a respeito de Deus. Na realidade cada um depende (do outro: a “Forma divina” daquela do mundo, e inversamente); nenhum é independente (da outra); é a pura verdade; nós não nos expressamos em metáforas. Por outro lado, quando eu falo daquilo que é absolutamente independente, tu saberás aquilo que entendo por isto aí (quer dizer, a Essência infinita e incondicionada). Cada um (a “Forma divina” como o mundo) é portanto ligado ao outro, e cada um não pode ser separado do outro; apreendeis bem aquilo que vos digo.

Ora, agora tu conheces o sentido espiritual da criação do corpo de Adão, quer dizer de sua forma aparente, e da “criação” de seu espírito, que é sua “forma” interior. Logo Adão é ao mesmo tempo Deus e criatura. E tu compreendestes qual é sua colocação (cósmica), a saber aquela da síntese (de todas as qualidades cósmicas), síntese em virtude da qual ele é o representante de Deus.

Adão é a “Alma única” (an-nafs al wahidah) da qual foi criado o gênero humano, segundo a palavra divina (no Corão): “Ó vós, homens, temais vosso Senhor quem vos criou de uma alma única, e quem criou dela sua esposa, e quem desdobrou deste casal muitos homens e mulheres.” (Corão IV, 1). As palavras “temais vosso Senhor” significam: façais de vossa forma aparente uma salvaguarda de vosso Senhor, e façais de vosso interior — quer dizer de vosso Senhor — uma salvaguarda de vós mesmos; todo ato (ou toda ordem divina) consiste em reprovação e em louvor (em negação e em afirmação); sejais portanto Sua salvaguarda na reprovação (quer dizer enquanto criaturas limitadas) e tomai-o para salvaguarda na louvação36, para que vós tenhais, entre todos os seres, a atitude a mais justa (em direção à Deus).

Após tê-lo criado, Deus fez ver a Adão tudo aquilo que havia posto nele; e Ele manteve o todo nas Suas duas Mãos: uma continha o mundo, a outra Adão e seus descendentes, pois Ele mostrou a estes as colocações que ocupam no interior de Adão37.

Como Deus me fez ver aquilo que pôs no gerador primordial, eu disto transcrevi neste livro a porção que me tinha sido designada, e não tudo aquilo que realizei; pois aquilo, nenhum livro nem o mundo atual não saberiam conter. Ora, entre as coisas que contemplei e que puderam ser transcritas neste livro, na medida que me designou o “Enviado de Deus — sobre ele a benção e a paz! — estava a Sabedoria divina no Verbo adâmico; é dela que trata este capítulo.


  1. Traduzimos aqui a’yan por “essências”, pois que se trata das essências dos Nomes, por oposição com suas formas verbais ou ideais. O objeto da “visão” divina reside nas possibilidades essenciais que correspondem aos “Nomes muito perfeitos”, a saber os “aspectos” universais e permanentes do Ser. Quando se fala da Essência una e única de todos os Nomes ou Qualidades divinas, emprega-se o termo adh-dhat

  2. A palavra al-’ayn (singular de a’yan) comporta as significações de “determinação essencial”, “essência pessoal”, “arquétipo”, “olho” “fonte”. Essa frase significa portanto que Deus queria ver-Se a Si Mesmo, com esta restrição de que Sua “visão” não se refere à Sua Essência absoluta (adh-dhat), que transcende toda determinação, mesmo principial, mas à Sua determinação imediata (’aynah), Seu “aspecto pessoal”, que é precisamente caracterizado pelas Qualidades perfeitas das quais os Nomes são a expressão. 

  3. Ou do Ser, o termo al-wujud tendo os dois sentidos. – Alguns manuscritos apresentam a variante: “… sendo dotado de faces (al-wujuh)…”, quer dizer de múltiplos “planos de reflexão” diferenciando a irradiação (ai-tajalli) divina. 

  4. A Ordem Divina é simbolizada pela palavra “seja!” (kun); ela se identifica, portanto, ao princípio da Existência. A palavra amr significa, em primeiro lugar, “ordem”, “comando”, mas comporta também o sentido de “realidade” e de “ato”. A Ordem Divina “seja!” corresponde também ao Ato puro. 

  5. Alusão à palavra divina (hadith qudsi) revelada pela boca do Profeta: “Eu era um tesouro escondido; eu quis ser conhecido (ou: conhecer), e eu criei o mundo.” 

  6. O ato visual é aqui tomado como o símbolo do Conhecimento em sua natureza universal. 

  7. Literalmente, “a coisa” (ash-shay). Ibn Arabi emprega por vezes este termo de “coisa” para designar uma realidade que não quer definir de maneira nenhuma; ele não diz “a Essência” (adh-dhat), para não afirmar a transcendência e a não-manifestação daquilo de que se trata, e não diz também “O Ser” ou “a Existência” (al-wujud), para não acentuar a imanência e a manifestação

  8. Ou “homogênea” (musawwi), quer dizer não portando ainda a marca qualitativa e diferenciada do Espírito 

  9. Rawh: “graça”, “liberdade”; alguns leem ruh, “espírito”. 

  10. É o caos primordial, onde as possibilidades de manifestação, ainda virtuais, se confundem na indiferenciação de sua matéria (espelho). 

  11. ”Quando Eu o tiver formado e que Eu tiver soprado nele de Meu Espírito…” (Corão, XV, 29). 

  12. A imagem de uma “efusão”, de um “transbordamento” ou de uma “emanação” do Ser (al-wujud) ou da Luz Divina (an-nur) nas formas receptivas do mundo não deve se entender como uma emanação substancial, porque o Ser – ou a Luz divina incriada – não procede de fora de Si Mesma. Essa imagem exprime ao contrário a soberana superabundância da Realidade divina, que desdobra e ilumina as possibilidades relativas do mundo, ainda que Ela seja “rica n’Ela mesma” (ghani binafsih) e que a existência do mundo não ajunte nada à Sua infinitude. – O simbolismo da “efusão” (al-fayd) Divina se refere a esta frase do Profeta: “Deus criou o mundo nas trevas, depois Ele verteu (afada) sobre ele Sua Luz.” 

  13. Al-tajalli significa “revelação” (em um sentido geral), “desencobrimento” e “irradiação”: quando o sol, coberto pelas nuvens, se “desencobre”, sua luz “irradia” sobre a terra

  14. Do ponto de vista cosmológico, esse receptáculo corresponde à substância passiva, a “materia prima” ou principio plástico de um mundo ou de um ente. Do ponto de vista puramente metafísico, o receptáculo que se opõe – de uma maneira totalmente principial e lógica – à “efusão” incessante do Ser, se reduz à possibilidade principial, o arquétipo ou a “essência imutável” (al-a’yn ath-thãbitah) de um mundo ou de um ente. 

  15. Esta passagem, o sufi persa Nur ad-din ‘Abd ar-Rahman Jami a explica assim: “A Majestade de Deus (al-haqq) se revela de duas maneiras; uma delas, que corresponde à revelação interior, puramente inteligível, que os sufis chamam de a Efusão santíssima, consiste na auto-revelação de Deus se manifestando de toda a eternidade a Si Mesmo sob a forma dos arquétipos e daquilo que eles implicam de caracteres e de capacidades; a segunda revelação é a manifestação exterior, objetiva, que se denominamos a Efusão santa (al fayd al-muqaddas); consiste na manifestação de Deus por intermédio da marca dos mesmos arquétipos; ela é o teatro onde aparecem as perfeições que, segundo a primeira revelação, estão virtualmente contidas nos caracteres e capacidades dos arquétipos” (Lawaih, cap. XXX; ed. do texto persa e trad. ingl. por E.H. Whinfield e Mirza Muhammad Kazvini; Oriental Translation Fund, New Series, vol. XVI, Royal Asiatic Society). Neste texto, as expressões “formas” ou “caracteres”, que se referem aos arquétipos, devem ser compreendidas como simples “alusões”, porque os arquétipos ou “essências imutáveis” estão evidentemente além de toda individuação ou distinção formal. 

  16. ”A Ele é o reino dos Céus e da Terra. A Deus retornarão as realidades” (al-umur, quer dizer as realidades incriadas das criaturas) (Corão, LVII, 5). 

  17. No texto original, todo o início do capítulo, até esta palavra, forma uma só frase com várias proposições incidentes; este é um conjunto lógico descrevendo todos os aspectos essenciais da Manifestação divina. 

  18. ”E quando teu Senhor disse aos Anjos: Na verdade, Eu posicionarei um vigário sobre a terra, eles responderam: ‘Aí porás alguém que aí semeia a corrupção e versa sangue, enquanto nós celebramos Teus louvores e Te proclamamos Santo? Ele disse: Em verdade, Eu sei aquilo que vós não sabeis. E ele ensinou a Adão todos os nomes, depois Ele os mostrou aos Anjos e lhes disse: Anunciai-Me os nomes daqueles, se sois verídicos! Eles responderam: exaltado sejas, não temos ciência fora aquela que Tu nos ensinou, pois és Tu o Conhecente, o Sábio! Ele disse: Ó Adão, fazei os conhecer seus nomes! E quando ele os fez conhecer seus nomes, Ele disse: não vos tinha Eu dito que Eu conheço o segredo dos céus e da terra e que Eu sei aquilo que mostrais e aquilo que escondeis? E quando Nós dissemos aos Anjos: prostai-vos diante de Adão, eles se prostraram todos salvo Iblis (o diabo), que recusou, se orgulhou e tornou-se infiel…” (Corão, 11, 28 ss.). 

  19. A expressão “forma” (çurah) é uma daquelas que os autores sufis usam de uma maneira muito livre, porque ela é suscetível de diversas transposições além de sua significação mais próximo, aquela de “delimitação”; a forma de uma coisa comporta um aspecto puramente qualitativo, a qualidade sendo de natureza essencial; por outro lado, enquanto a forma de um ente se opõe a seu espírito, ela se reduz simbolicamente à função receptiva da materia. 

  20. Segundo o adágio sufi: “O homem é um pequeno cosmos, e o cosmos é como um grande homem”. 

  21. A Unicidade Divina, em virtude da qual todo ser é único. 

  22. O “Lado Divino” é a soma das Qualidades divinas, a Divindade enquanto Ela produz e domina o mundo (o “lado das criaturas”). 

  23. A “Realidade das realidades” ou “Verdade das verdades” corresponde ao Verbo (Logos), enquanto “lugar” de todas as possibilidades de manifestação. Ela é a mediadora eterna, a “Realidade Muhammadiana” (al-haqiqat al-muhammadiyah), o “istmo” (barzakh) entre o Ser puro e a existência relativa, assim como entre a não-manifestação e a manifestação. Ela é o protótipo de toda coisa; não há nada que não porte sua marca. 

  24. A Natureza universal é o poder receptivo universal, a “matriz” do cosmos. Segundo as cosmologias helenizantes, a Natureza se reduz ao princípio plástico do mundo formal, à raiz dos quatro elementos e das quatro qualidades sensíveis, que regem todas as mudanças de ordem física. lbn Arabi, transpondo os elementos na ordem cósmica total, atribui à Natureza uma função muito mais vasta, coextensiva de toda manifestação, aí compreendido os estados angélicos. Ela é assim análoga àquilo que os hindus designam como maya ou como shakti universal, aspecto maternal e dinâmico de Prakriti, a Substância ou Materia prima. Acrescentemos, no entanto, que este princípio não desempenha nos ensinamentos de Ibn Arabi o mesmo papel fundamental que assume na doutrina advaita, na medida que o Islã considera as funções produtoras do universo de uma maneira eminentemente “teocêntrica”. 

  25. A criatura “pretende” portanto à totalidade, em virtude ao mesmo tempo de sua origem divina, de seu protótipo universal e de sua raiz natural

  26. NT: Abd ar-Razzaq al-Qashani precisa que a razão, que é ela mesma engendrada pela polaridade do ativo e do passivo, da Ordem divina (al-amr) e da Natureza (at-tabi’ah), não pode ultrapassar essa polaridade e a compreender “do alto”. 

  27. São aqueles dois aspectos de toda palavra revelada, e aos quais se relacionam as duas designações do Corão como “Recitação” (al-qur’ân) e como “Discriminação” (al-furqân). 

  28. Os “universais”, segundo a terminologia escolástica. 

  29. Segundo a linguagem da qual se serve Ibn Arabi aqui, a ideia de “existência individual” (wujud ‘aynî) pode ser simbolicamente transposta além da condição formal, que é o domínio da individuação propriamente dita. Assim por exemplo, um Anjo não é um “indivíduo”, porque não representa uma variante no interior de uma espécie; no entanto, o argumento enunciado acima se aplica igualmente aos Anjos

  30. Al-mawjudat al-’ayniyah: as existências — ou realidades — individuais ou substanciais; ver a nota precedente. 

  31. quer dizer não manifestada 

  32. Segundo a palavra do Profeta: “Deus Se esconde por setenta mil véus de luz e de trevas; se Ele os removesse, as fulgurações de Sua Face consumiriam quem quer que O olhasse.” 

  33. O simbolismo das duas Mãos de Deus encontra-se na Qabbalah, notadamente no Zohar, onde elas são comparadas ao Céu e a Terra enquanto princípios ativo e passivo da manifestação

  34. Segundo a palavra divina revelada pela boca do Profeta (hadith qudsi): “Meu servidor não pode aproximar-se de Mim com qualquer coisa que Me agrade melhor do que aquilo que Eu lhe imponho. Meu servidor aproxima-se sem cessar de Mim por obras gratuitas até que Eu o ame; e quando Eu o amo, Eu sou sua audição com a qual ele ouve, a vista pela qual ele vê, a mão com a qual ele apreende e o pé com o qual ele anda; se ele Me ora, Eu lhe dou certamente, e se ele busca Minha ajuda, Eu o socorro certamente.” (Citado por al-Bukhari segundo Abu Hurayrah). 

  35. A expressão de “forma” é aqui análoga à noção peripatética de forma (eidos), quer dizer de marca qualitativa; lembremos que a qualidade pode ser transposta no universal puro. Por referência à palavra do Profeta: “Deus criou Adão na Sua forma (surah)”, o Sufismo denomina “Forma divina” o conjunto das Qualidades perfeitas pelas quais Deus Se revela no universo. 

  36. Segundo al-Qashani: “Tomai-o por salvaguarda na louvação em atribuindo as limitações a vós e todas as qualidades positivas a Deus, conformemente à palavra corânica: ‘Todo bem que te toca vem de Deus, e todo mal que te atinge vem de ti-mesmo’ (Corão IV, 81)”. 

  37. Segundo o relato corânico: “E quando teu Senhor retirou dos rins dos filhos de Adão sua semente e os tomou como testemunhas sobre eles mesmo: não sou Eu vosso Senhor? eles responderam: sim, nos o atestamos; isto, para que dizeis no do dia da ressurreição: em verdade, nós o temos negligenciado” (VII, 171). 

Sabedoria dos Profetas