Addas1996
A profunda veneração que Ibn Arabi demonstra por Jesus — ao qual, ademais, ele atribui um papel capital, como veremos, na economia da santidade — parecerá sem dúvida paradoxal em um mestre que, por outro lado, não cessa de proclamar sua qualidade de « muhammadiano perfeito » e reivindica mesmo o status de « herdeiro supremo de Muhammad ». Uma rápida análise de sua doutrina hagiológica, e da noção maior de herança profética que a subjaz, demonstrará sem dificuldade que não há aí nenhuma contradição. Em todo caso, a devoção do Shaykh al-akbar pela pessoa de Jesus não nasceu de alguma especulação abstrata; ela tem sua fonte na relação íntima que se estabelece desde o início entre o jovem adolescente em busca de Deus e o Filho de Maria: « Ele [Jesus] é meu primeiro mestre na Via; foi em suas mãos que ME converti. Ele vela por mim a toda hora e não ME negligencia um instante[17]. » Outra passagem das Futûhât permite compreender por que Ibn Arabi associa ora sua conversão à visão que o colocou na presença dos três profetas, ora à intervenção única de Jesus: « Eu o encontrei frequentemente no curso de minhas visões; foi junto a ele que ME arrependi. […] Ele ME ordenou a praticar a ascese e o renunciamento[18]. » Se Muhammad lhe prescreve o itinerário que deve seguir, é Jesus quem, no curso do mesmo episódio visionário, se apresenta como seu guia na longa e perigosa travessia que ele empreende; é ele quem, na ausência de mestre terrestre, se encarrega da educação do jovem místico que ignora os desvios e os perigos da Via.
Embora não seja a mais comum, esta forma de direção espiritual assegurada pelo influxo espiritual de um profeta — ou de um mestre defunto — não é excepcional. Na terminologia do sufismo, ela confere àqueles que dela se beneficiam o status de uwaysî — por referência ao caso de Uways al-Qarani, que, contemporâneo do Profeta, foi instruído por ele sem jamais tê-lo encontrado. Os uwaysis constituem, portanto, uma categoria de santos que parecem derivar de um fenômeno de geração espontânea, visto que não têm genealogia regular; daí provêm as singularidades que se observam por vezes em certas cadeias iniciáticas onde tal personagem figura como discípulo de um mestre morto um século antes de seu nascimento. Embora tenha encontrado posteriormente numerosos shuyukh (pl. de shaykh) e tirado proveito de seu ensinamento, Ibn Arabi permanecerá um uwaysî até seu último suspiro.
Sem que ele ainda tivesse plena consciência disso, o destino de Ibn Arabi está doravante ligado em mais de um aspecto ao de seu invisível protetor, Jesus, cujas recomendações ele aplica à letra: « Foi assim que eu mesmo ME despojei de tudo o que ME pertencia. No entanto, naquela época, eu não tinha mestre a quem confiar o assunto e entregar meus bens. Assim, recorri a meu pai; após tê-lo consultado, entreguei-lhe tudo o que possuía. Não recorri a ninguém mais, pois não retornei a Deus por intermédio de um mestre, dado que naquele tempo eu não conhecia nenhum. Separei-ME de meus bens como um morto se separa de sua família e de suas posses[19]. » Ibn Arabi começará, como veremos, a frequentar mestres em 1184, aos dezenove anos. Esta decisão interveio, portanto, anteriormente, na época em que, sob a tutela do Filho de Maria, ele caminhava para Deus na maior solidão.
Curiosamente, seu pai, que no entanto não ardia naquela época com um zelo religioso comparável ao de seu filho, não parece ter se oposto a essa desistência radical, a qual dificilmente poderia passar despercebida de suas relações. É verdade que os anais familiares já contam com dois casos de conversão espetaculares. Houve primeiro, antes do nascimento de Ibn Arabi, o caso de um de seus tios maternos, um príncipe berbere que reinou por algum tempo sobre Tlemcen na época almorávida. A história desse emir que, comovido pelas recriminações de um asceta a quem havia imprudentemente interpelado, trocou imediatamente o fausto real pelo hábito dos sufis, obviamente marcou o imaginário popular. Não nos surpreende, em consequência, reencontrar o relato de sua dramática conversão — que Ibn Arabi consignou nas Futûhât[20] — na coletânea hagiográfica de Tadili (m. 1230) ou na história dos reis de Tlemcen redigida pelo irmão do célebre historiador Ibn Khaldun.
Mais comovente é a história que Ibn Arabi relata, apoiando-se em suas próprias lembranças de infância, a propósito de seu tio paterno[21]. Este último levava uma velhice tranquila, quando veio a cruzar em uma botica um jovem garoto em busca de um remédio. A ignorância desarmante da criança em matéria de farmacopeia suscitou uma infeliz brincadeira por parte do velho homem; seu jovem interlocutor — que, sublinha Ibn Arabi, trazia sobre si as marcas de um piedoso adorador — replicou-lhe que seu desconhecimento das drogas era insignificante comparado à insensatez do ancião em relação a Deus: « Meu tio, conta Ibn Arabi, levou esta advertência a sério; colocou-se a serviço da criança e entrou por ela na Via. »
Aliás, o pai de Ibn Arabi, de quem se sabe que desaprovava as tendências religiosas por demais marcadas de seu filho, acabará no fim de sua vida por aderir ao seu ponto de vista: « No dia em que morreu, ele estava então gravemente doente, sentou-se sem se apoiar e ME disse: ‘Ó meu filho, hoje é a partida e o encontro.’ Eu lhe respondi: ‘Deus inscreveu tua salvação nesta viagem e te abençoa neste encontro.’ Ele se alegrou com estas palavras e ME disse: ‘Que Deus te recompense! Ó meu filho, tudo o que eu te ouvia dizer e que não compreendia, e que por vezes eu reprovava, é isso a minha profissão de fé [22]»
Embora tenha tomado esta resolução na época em que ainda era um adolescente, Ibn Arabi não rejeitou seu patrimônio sob o impulso de um entusiasmo juvenil e passageiro. Maturamente refletida, sua decisão decorre de uma simples constatação: a indigência (faqr) é o status inalienável da criatura, aquele que lhe atribui, entre outros, o versículo corânico muitas vezes citado por ele: « Ó homens! Vós sois indigentes perante Deus! » (Cor. 35:15) Foi por ter negado esta indigência ontológica que o homem foi decaído de seu teomorfismo original; é aceitando assumi-la que ele o recupera. Outro testemunho autobiográfico confirma que o « renunciamento » de Ibn Arabi não era, a seus olhos, senão a estrita aplicação de uma lei metafísica que governa todos os seres: « Desde o momento em que acedi a esta estação espiritual (a da “servidão pura”), não possuí nenhuma criatura viva, nem mesmo as roupas que visto, pois só visto aquelas que ME emprestam e que ME autorizam a usar. Se ME acontece possuir alguma coisa, separo-ME dela imediatamente, oferecendo-a ou, se se trata de um escravo, eu o liberto. Tomei este compromisso quando quis realizar a servidão suprema em relação a Deus. Foi-ME dito então: ‘Isso não te será possível enquanto um único ser tiver o direito de te reclamar alguma coisa!’ Eu respondi: ‘O próprio Deus não poderá ME reclamar o que quer que seja!’ Responderam-ME: ‘Como isso seria possível?’ Eu respondi: ‘Só se reclama daqueles que negam [sua indigência ontológica], não daqueles que [a] reconhecem; daqueles que pretendem possuir direitos e bens, não daquele que declara: ‘Não tenho nenhum direito, nenhuma parte em coisa alguma[23]!’’ »
A comparação que Ibn Arabi estabelece entre o abandono de seus bens e a morte não é, portanto, apenas uma simples metáfora. Ela dá conta do sentido profundo do engajamento espiritual tal como ele o concebe: a fuga para Deus que prescreve aos homens o versículo 50 da surata 51, « Fugi para Deus! », arrasta o peregrino para a morte do ego; a viagem que ele empreende é, como a do defunto, uma viagem sem retorno que ele deve, também, cumprir na mais radical nudez.