Christian Jambet busca de novo na obra de Molla Sadra elementos de uma reflexão profunda de ordem metafísica e ontológica. Esta obra se apresenta como um testemunho integral da revelação do real divino em cada ato de ser, de cada existente, do mais humilde ao mais eminente. Este livro de Jambet tenta apreender esta intuição do real, nutrida pelo sufismo de Ibn Arabi, pela filosofia do Islã clássico, pela herança dos gregos, e pela dimensão esotérica e mística do xiismo.
Molla Sadra vê o mundo se mover sem cessar em uma revolução ininterrupta de suas substâncias, e a existência infinita romper seus limites sucessivos, do sensível ao inteligível, do mineral ao anjo. Em um florescimento de epifanias, no espelho múltiplo dos corpos e das almas, percebe o absoluto da liberdade divina. Revelação da liberdade na metamorfose do fiel e do sábio, a existência ensina esta única palavra de ordem: imitar o divino que se dá a ver “sob a mais bela das formas”.
Do conceito do existente, passamos à presença do existente, a imediatidade de seu real. Fazemos retorno ao que há de mais imediato, esta evidência que não pode ser fundada por qualquer representação e qualquer demonstração. A metafísica terá assim a considerar a intensidade pura do existir, do ato de ser. Nada portanto que distingue, formalmente, a definição sadriana daquela que legou Avicena, senão uma insistência decisiva a mostrar que, conhecimento do ato mesmo em que se resolve o existir, a metafísica difere das ciências derivadas, cujos objetos são as quididades respectivas dos existentes. Estas ciências dizem todas o que são os existentes, a metafísica atesta, antes de tudo, isto no que o existente existe, isto que constitui o ato de ser, e qual é a natureza da atividade (filiya) pela qual se estabelece de maneira efetiva. Se Deus é existência, o objeto de nosso saber mais alto não será a quididade das coisas mas a natureza de seu ato de existir.
O ato de ser (wujud) é o objeto da «ciência divina» pois isto que advém em primeiro destaca-se sempre de uma certa posição na existência. A metafísica não tem por preocupação principal, como as outras ciências, a tomada em consideração da definição formal, ou ainda isto que seria matéria de um ensinamento teórico particular. Ela não dispões a essência do ente segundo uma figura qualquer da mathesis, mas ela trata da realidade deste ente. O ato de ser não pertence, com efeito, ao ente enquanto ente, como faria uma de suas propriedades, mas é o ente que, inversamente, exprime sempre um certo grau de existência. É por seu ato de ser que o ente afirma sua realidade efetiva, da qual decorrerá que o ente será isto ou aquilo, possuirá uma certa quididade. A partilha entre ato de ser e quididade determina todo o empreendimento sadriano, e sua interpretação resume todo o empreendimento da metafísica. Em função desta partilha inicial, a ciência divina se distingue das ciências particulares votadas ao conhecimento da natureza de tal ou tal região do ente.
Essas ciências são sempre ciências regionais e elas supõem que seus objetos sofrem uma certa transformação, uma mutação do ponto de vista sob o qual são concebidos. É preciso que, de existente tomado em sentido absoluto, se tornem entes particulares «de entre os movimentos e as coisas movidas, ou de entre as quantidades contínuas e discretas». A caracterização da metafísica como ontologia, ciência do ser, implica esta condição transcendental, a divisão do ato de ser e da quididade, posto que as ciência do ente particular serão distintas da metafísica enquanto serão, diferentemente dessa, saberes cujos objetos serão exclusivamente os atributos quiditativos do ente.
Como Sadra declina a série das manifestações do ato de ser onde se experimenta a demanda metafísica? É evidente para ele, de pronto, que a ciência do ato de ser não tem nenhuma necessidade de ser abolida ou de ser definida, ele se impõe na imediatidade de sua presença. Em seguida, a ontologia não é, nela mesma, teologia, embora Deus seja, por excelência, ato de ser. Na ordem da descoberta, Deus não é o primeiro objeto que seja examinado, mas para que o ato de ser desvele sua realidade, convém, como o ensina Avicena, em linha direta de Aristóteles, de partir do existente em geral. Esta ordem da pesquisa não reverte menos a ordem hierárquica dos atos de ser, e deve nos conduzir ao reestabelecimento da ordem efetiva, de maneira que Deus seja, não somente o primeiro dos existentes, mas a realidade constitutiva de todo ato de ser.
Desde então a ontologia se converterá irresistivelmente em teologia. O enunciado do programa da ontologia por Sadra testemunha: estabelecer o conjunto das realidades efetivas que têm uma realidade de ato de ser (al-haqaiq alwujudat) a partir do Criador. Segue-se o programa da teologia propriamente dita: a unicidade (wahdaniya) do Criador, o conhecimento de seus nomes e atributos, o conhecimento dos anjos, a exegese dos livros santos e da mensagem dos profetas enviados, o estabelecimento do cantão de outro mundo. A escatologia completa a ontologia, ela é a razão de ser da metafísica. É claro como o dia, para quem lê Sadra, que os exercícios os mais refinados da especulação não seriam, para ele, senão um jogo fútil se não se necessitasse justificar para nossa inteligência o conjunto e o detalhe das profecias concernindo a retribuição futura dos bons e dos maus. A ontologia se completa em uma moral espiritual, que supõe ela mesma o edifício dos universos e a filosofia da ressurreição. Filosofia exegética, o sistema se cumpre em metafísica escatológica.
Introdução
PRIMEIRA PARTE – A REVOLUÇÃO METAFÍSICA
1. O testemunho da realidade
- Sabedoria e existência
- Vida divinizada
- Autoaperfeiçoamento
- Ordem e semelhança
- Ontologia e teologia
- Ser é o nome da realidade
- A contemplação da realidade
- Fluxo, hierarquia e diferença
- A vaidade do nada
- O ser em expansão
- Deus é a pura intensidade do ser
- O status das quididades
- Crítica da ilusão transcendental
3. O momento de Avicena
- Origem do problema da metafísica
- A divisão ontológica
- O enigma da quididade
- Reconciliação ontológica
4. Liberdade e intensidade
- Atividade e movimento substancial
- A essência da luz
- O espelho das aparências
- O ato de ser é sujeito
- O ceticismo do ser
- A história do ser
- Liberdade e conexão
- Conclusão: os esquemas da realidade
PARTE DOIS – A REVOLUÇÃO EXISTENCIAL
1. O movimento essencial
- O nascimento do mundo
- A substância em movimento
- Teoria da natureza e do múltiplo
- Morte e transfiguração
- Tempo incorporado
- Física espiritual
2. Os nascimentos da alma
- Providência e vida
- O problema de Avicena
- A alma ligada ao corpo é corpórea
- O animal voador
- A monarquia da alma
- Crítica ao organicismo
- Lunação intensiva da alma
- Viagens e batalhas da alma
- As duas formas da alma
- A existência anterior da alma
- Os múltiplos estados da alma
- A queda da alma
- Infinidade intensiva
3. A imaginação
- A escrita da inteligência
- Imaginação profética
PARTE TRÊS – SALVAÇÃO
2. O retorno a Deus
- O segundo nada
- Conversão para o inteligível
- A unidade da inteligência e da inteligibilidade
3. O Deus das epifanias
- Os nomes divinos
- O homem perfeito
- O trono divino é o coração dos fiéis
- “Não há compulsão na religião”