Klimov (JBC) – Lúcifer (Boehme)

Como toda a criação é realizada em Deus, deve haver uma estrutura trinitária além das sete forças divinas. O mundo está dividido em três reinos: o de Miguel corresponde ao Pai, o de Lúcifer ao Filho e o de Uriel ao Espírito Santo. “Esses três reinos são tão imensos que nenhum número humano pode medi-los”. (Aurora, VII, 8) No entanto, estão longe de ocupar a infinidade de espaço que pertence somente a Deus. Tudo parece perfeito. Como, então, ocorreu a queda de Lúcifer, como Deus permitiu que ela acontecesse?

Lúcifer era, como seu nome sugere, o príncipe da luz “criado segundo a qualidade, a natureza e a beleza de Deus, o Filho, e unido a ele no amor (…). Seu coração estava no centro da luz, como se ele fosse o próprio Deus, e sua beleza superava tudo” (Aurora, XII, 101).

Essa foi a causa de sua queda, mas essa causaBoehme insistiu nisto — não era de forma alguma externa a ele: “ele estava deslumbrado com sua bela forma, vendo que espírito nobre, belo e majestoso surgia dentro dele” (Aurora, XVI, 32). E ele se exaltou e se inflamou, pensando que com seu ardor se tornaria o próprio Deus. Mas isso apenas rompeu a união forjada pelo amor entre suas qualidades, que, deixadas à própria sorte, tornaram-se “tão furiosas em sua conflagração, que uma continuamente altera a outra por seu borbulhar maligno” (Aurora, IX, 45).

E esta corrupção afetou não apenas Lúcifer, mas também seu reino e todos os seus anjos, que estavam ligados a ele como se fossem um único todo, “um único anjo”. “Agora você dirá: Deus deveria ter se oposto a ele para impedi-lo de ir tão longe. Sim, caro cego (…), como Deus poderia ter resistido a ele? Com bondade? Teria sido inútil; Lúcifer o desprezou, e ele mesmo queria ser Deus”. (Aurora, XIV, 72) Com cólera, então? Em Deus, entretanto, a cólera é apenas um poder e, portanto, totalmente impotente. É somente na medida em que uma criatura causa a ruptura das forças que emanam do salniter dentro dela que podemos dizer, mas de fato de forma abusiva, que a ira de Deus a atinge. Ela é a verdadeira fonte da cólera que se reflete sobre ela. Deus apenas tentou reparar os danos causados por essa catástrofe. E ela era absolutamente imprevisível. Boehme foi enfático nesse último ponto: “Pois se Deus tivesse sabido disso antes do tempo da criação dos anjos, teria havido uma vontade premeditada eterna; não teria havido inimizade contra Deus, mas ele (Lúcifer) teria sido criado um demônio por Deus desde o início.” (Aurora, XIV, 35)

Mas Deus não podia refazer a situação como era antes da queda. Ele não podia expulsar Lúcifer deste mundo, nem que fosse apenas para evitar a disseminação da corrupção nos reinos dos arcanjos que permaneceram fiéis. Tampouco poderia aniquilá-lo, pois, para isso, teria de amputar sua própria força. Mas como o Todo poderia se separar de algo? Ao se tornarem propriedade da criatura, os poderes nunca foram separados do salniter divino do qual emanam, mesmo quando o orgulho luciferiano os desuniu. É por isso que Boehme pôde escrever: “Você não deve pensar que (…) toda a natureza ou o lugar deste mundo se tornou uma cólera vã e amarga de Deus. Não (…). A cólera não alcança a geração mais íntima da natureza, pois o amor de Deus ainda está escondido no centro deste mundo”. E é por isso que “em todas as coisas deste mundo, o amor e a cólera ainda estão um no outro, e estão constantemente lutando e brigando juntos” (Aurora, XVI, 32). O restabelecimento, na medida do possível, da ordem no lugar ocupado pelo reino de Lúcifer é a segunda criação, aquela transmitida pelo texto do Gênesis, que Boehme não tinha escrúpulos em interpretar à sua própria maneira (muitas vezes excessivamente obscura, aliás), uma vez que nem Moisés nem mesmo Adão, segundo ele, testemunharam os eventos ali narrados.

Jacob Boehme