Krishnamurti — Luta Contínua
Muitas vezes nos perguntamos com espanto por que a vida, o nascimento, a morte, são um processo de luta contínua. Por que a vida, a existência, é uma luta, uma batalha incessante contra si mesmo, contra os outros, contra as idéias que se têm? Por que o eterno conflito? Esta luta sem fim é necessária, ou existe um processo diferente? Este conflito, este esforço, esta batalha contra si mesmo e contra o vizinho é necessária para existir, para viver? Nós vemos que a vida, assim como a conhecemos, é o processo de um vir a ser sem fim, que se move daquilo que é ao que não é, da cólera à não-cólera, da violência à paz, do ódio ao amor. B evidente que o processo do vir a ser é uma repetição na qual há sempre um esforço doloroso. Vemos que em tudo que fazemos na vida a luta para ser repete-se sempre. Este vir a ser é cultivado pela memória, não é mesmo? E este cultivo da memória passa por virtude. O homem que aos seus próprios olhos personifica a justiça e o direito, fecha-se em si mesmo (righteousness is a process of self-enclosure). Este contínuo vir a ser — o empregado que se torna diretor, o joão-ninguém que se torna nobre —, esta luta contínua, é uma forma de autoperpetuação. Conhecemos esta guerra por qualquer motivo: presos, queremos ser livres; pobres, queremos ser ricos; pequenos, queremos ser grandes; avarentos, nós procuramos ter fundos, valores. Há sempre esta batalha perpétua do futuro, e futuro importa no cultivo do passado. Sem memória não há vir a ser. Eu estou com raiva e quero o estado de não-raiva. Por isso, luto. E esta luta é considerada boa, justa, virtuosa. É assim que se fecha em si mesmo. A partir do momento em que eu desejo tornar-ME qualquer coisa, ou ser qualquer coisa, o importante é o futuro. E daí provém esta luta; nós dizemos que ela é justa, virtuosa e nobre. Assim, do nascimento à morte, estamos engajados num esforço incessante, e aceitamos esta guerra em razão do vir a ser como válida e nobre, como parte essencial da existência.
Mas a vida, a existência, é inevitavelmente um processo de luta, de dor, de aflições, uma batalha contínua? Certamente há algo de falso nesta ação em que consiste o vir a ser. Deve existir aí algo diferente, um modo diferente de viver. Creio que há um; mas ele só pode ser compreendido depois que compreendermos o total significado do vir a ser. O futuro implica sempre numa repetição e portanto no cultivo da memória, que destaca o eu; e o eu, em sua própria natureza, é trabalho doloroso, conflito, batalha. Ora, a virtude nunca poderá ser meta. A virtude é um estado de espírito no qual não há luta. Você não se pode tornar virtuoso: você é ou não é. Pode se tornar uma personificação do direito e da justiça (you can always become righteous) mas nunca poderá se tornar virtuoso, porque a virtude gera a liberdade, e você pode notar que o homem de princípios rígidos (righteous) jamais é livre. Isto não quer dizer que o homem virtuoso seja aquele que deixa o barco correr, mas que a virtude, por sua própria natureza, gera a liberdade. Se tentar ser virtuoso, o que acontece? Você se tornará uma personificação de princípios (righteous). Mas a virtude necessariamente gera a liberdade, porque a partir do momento que se compreende o processo a luta cessa e como conseqüência há a virtude.
Examine, por exemplo, a clemência. Você não pode tornar-se caridoso, não é mesmo? Se o fizer, o que acontecerá? Se você lutar para ser um benfeitor, se tentar tornar-se generoso, benevolente, o que acontecerá? No fato de se esforçar para ser generoso, o destaque está fortemente no futuro, no vir a ser, o que significa que a importância está sendo dada ao eu. E ele que se torna qualquer coisa, e o eu nunca pode ser clemente, não é? Ele pode se vestir com a virtude, mas nunca ser virtuoso. Assim, a virtude não é a rigidez do homem que se sente sem culpa (virtue is not righteousness); o homem estritamente em seus princípios (the righteous man) nunca poderá ser virtuoso. O que ele faz é se fechar, enquanto a virtude, onde não existe vir a ser, mas um ser, é sempre livre, aberta. Faça esta experiência e verá que a partir do momento em que se esforçar para ser caridoso, virtuoso, generoso, estará se cercando de resistências. Se compreender realmente o processo do tornar-se, que consiste em destacar o eu, você verá nascer uma segurança, uma liberdade, um ser no qual existirá a virtude. Mas como se transformar, gerar esta mudança radical de se tornar um ser? Uma pessoa que muda, e que por conseqüência faz um esforço, sustenta uma luta, uma batalha contra si mesma, como pode conhecer este estado de ser que é a virtude, que é a liberdade? Espero ter exposto o problema claramente. Eis aqui: lutei durante anos para tornar-ME alguma coisa, para não ser invejoso; mas como eu posso abandonar esta luta, e simplesmente ser? Porque enquanto eu lutar para ser alguma coisa, para adquirir a retidão e a virtude, estarei fechando o círculo sobre mim mesmo; e não há liberdade neste confinamento. Portanto, tudo o que eu posso fazer é estar consciente, lucidamente passivo sobre o meu processo de vir a ser. Se eu sou vazio, posso ser consciente deste fato e não lutar para ser qualquer coisa. Se sou colérico, invejoso, ciumento, não caridoso, posso ser simplesmente consciente disso e não ME opor. Quando nos opomos a uma qualidade estamos dando importância à luta, e conseqüentemente reforçamos o muro da resistência. Este muro de resistência é considerado como sendo a própria virtude, mas eie impede que a virtude nasça. A verdade só aparece ao homem livre, e para ser livre não é preciso cultivar a memória que é a armadura da moralidade convencionai.
Resumindo, deve-se estar consciente desta luta, desta batalha perpétua. Simplesmente consciente, sem oposição, sem condenação. E se estiver realmente em estado passivo de observação, e portanto lúcido acerca do que vive, verá que a inveja, o ciúme, a violência, e tudo mais desaparece dando lugar à ordem. Tranqüilamente, rapidamente, uma ordem se estabelece. Não aquela dos que se dizem virtuosos, aquela que encerra o indivíduo em si mesmo. Repito que a virtude é liberdade e não um processo de confinamento. Portanto é essencial ser virtuoso, e não rígido, porque a virtude gera a ordem. Somente o homem confuso usa sua respeitabilidade como ornamento; ele está em estado de conflito porque usa sua vontade como meio de resistência. E o homem de vontade nunca pode encontrar a verdade, porque jamais será livre. Ser, que significa reconhecer aquilo que é, aceitar o que é — sem tentar transformações, sem condenações —, gera a virtude. E nesta há liberdade. Quando o espírito não cultiva a memória e não procura encarnar a virtude como meio de resistência, existe a liberdade. E nesta liberdade surge a realidade, esta felicidade que só é possível conhecer vivendo-a.