Mircea Eliade e René Guénon

Excertos da tradução em português de Dimas David Santos Silva, do livro de Steven Wasserstrom, “Religion after Religion”

“Reintegração” era um termo técnico usado por Martines de Pasqually e por Louis-Claude de Saint-Martin, por um dos iniciadores de Guénon no martinismo, Stanislas de Guaita, e eventualmente pelo próprio Guénon. É atualmente um lugar comum histórico o fato de que esta ‘contra-revolução’ tenha tido um forte impacto na vida cultural francesa subsequente.

Eliade chamou de ‘reintegração’ a coincidência de opostos, um uso explicitamente mantido por René Guénon (1886-1951), fundador da chamada escola tradicionalista. Guénon emergiu no fim de século na França, em meio à maçonaria, ao martinismo, ao templarismo e ao iluminismo, para estabelecer aquilo que veio a ser conhecido como tradicionalismo. Guénon, na sua juventude, tornou-se um martinista iniciado. No período entre 1906 e 1912 associou-se às lojas martinistas estabelecidas por Papus (Dr. Gérard Encausse, 1865-1916). Papus fundou o Conselho Supremo da Ordem Martinista em 1891. Um iniciador de Guénon, Stanislas de Guaita (1861-1897) chefiou a Ordem Cabalística da Rosacruz (Ordre Kabbalistique de la Rose-Croix). Um ‘re-vigoramento’ subsequente da Ordem do Templo, conseguido por diversos membros da ordem martinista, foi conduzido por Guénon em 1908.

Eliade destacou-se longe deste meio e deu pouca atenção a esta dimensão de seu programa durante sua vivência americana. Seu interesse nas ciências ocultas, contudo, durou a vida inteira. Ele tinha escrito um artigo apreciando “O valor do ocultismo na cultura contemporânea”, de Julius Evola, já em 1927 e publicou Ocultismo, Bruxaria e Modismos Culturais em 1976. Nos anos trinta, como comentou seu biógrafo, “é evidente que Eliade deseja associar-se metodologicamente (Oliver Leroy, Guénon, Evola e Coomaraswamy)”. Além disso, em uma coletânea intitulada Fragmentarium, publicada nos anos trinta, Eliade elogiou Guénon por seu inequívoco desprezo (mépris) em relação ao mundo moderno, proclamando que ele é um verdadeiro mestre:

É isto que pensam hoje talvez as pessoas mais inteligentes deste século. Entre estes não podemos deixar de nomear René Guénon, em quem, entre outros numerosos ilustres, se concentrou uma capacidade enorme de criticar, em bloco, o mundo moderno. Não penso que já tenha existido qualquer outra pessoa que haja criticado sua época tão categoricamente quanto este prodigioso René Guénon. No entanto, jamais deixa transparecer em sua crítica compacta, olímpica, qualquer traço de cólera, qualquer vestígio de irritação, qualquer sombra de melancolia. Ele é um verdadeiro mestre.

Mac Linscott Ricketts, biógrafo do jovem Eliade, mostrou diversas vezes que “obras de Coomaraswamy, Mus, Guénon e Evola tiveram um impacto decisivo na metodologia e no vocabulário de Eliade no final da década de trinta.” Lembrando-se de seu primeiro encontro com Evola em 1937, Eliade parecia equivocado. “Admirei sua inteligência e, ainda mais, a densidade e clareza de seu discurso. Como René Guénon, Evola levantou a ideia de uma ‘tradição primordial’, em cuja existência eu não conseguia acreditar; eu desconfiava de sua característica artificial e anti-histórica.” Uma leitura mais profunda deste trecho, analisando todo o seu significado, mostra contudo que a diferença entre eles era de grau e não de espécie. Por um lado, Eliade confirmou o tradicionalismo de seu amigo italiano. “De um certo ponto de vista, ou seja, de uma tradição exemplar, anti-histórica, ele estava certo.” A diferença entre eles, continuou Eliade, era que ele, diferentemente de Evola, não estava perdendo a esperança; pelo contrário, ele continuou a tratar da cultura, mesmo quando já estava em idade cre-puscular.” Em julho de 1974, Eliade dedicou quase duas páginas de seu jornal para refletir sobre a morte de Evola. Aqui, novamente ele afirma o mesmo ponto que já tinha tratado em Autobiografia, não que Evola estivesse errado, mas simplesmente que ambos escreveram para públicos diferentes. “Os livros que escrevi são dirigidos ao público de hoje. Diferentemente de Guénon e seus competidores, creio que não tenho nada a escrever que seja dirigido especificamente a eles.” Esses dois artigos finais de Eliade a respeito de Evola mostram o idêntico ponto de vista de Eliade a respeito de sua relação com o tradicionalismo de Evola: “Os ‘tradicionalistas’ como Evola e Guénon não estavam errados, mas ele simplesmente não quis limitar seu público a seus grupos de iniciados apenas. Outro artigo em seu jornal parece esclarecer sua atitude em relação a Guénon. No final de 1977, Eliade comentou sucintamente que “René Guénon acabou descobrindo, bem tarde na sua vida, as verdadeiras fontes orientais e ocidentais das tradições esotéricas e, acima de tudo, entendeu seu significado.”

Quando Eliade publicamente entrou em atrito com a philosophia perennis (filosofia perene) de Guénon em sua palestra sobre Freud em 1974, ele pareceu colocar como contraponto um ‘esoterista’ pessimista a ‘ocultistas’ otimistas, explicitamente definindo estes termos como “dois entendimentos opostos da tradição ocultista.” E necessário prestar mais atenção a este ensaio, O Oculto e o Mundo Moderno, para ver por que esta ‘oposição’ entre ‘esotérico’ e ‘oculto’ era outro exemplo de sua camuflagem a respeito de suas fontes. Eliade se divertiu muito com a ideia bem-humorada desta palestra: a vigésima-primeira palestra anual no Memorial Freud, inicialmente publicada no Jornal da Associação da Filadélfia de Psicanálise. Ele esclarece sua terminologia: “Esta diferenciação (entre ‘esotérico’ e ‘oculto’) é importante e nos ajuda a entender os papéis paralelos de ocultismo e esoterismo nos tempos modernos” (enfaticamente). O tratamento de Guénon é esclarecedor aqui:

… neste livro cheio de conhecimento e brilhantemente escrito; o mais importante e mais representativo do esoterismo contemporâneo e mais significativo do que os pontos de vista racionalistas; apressamo-nos a acrescentar que a doutrina de Guénon é consideravelmente mais rigorosa e mais irrefutável do que a dos ocultistas e herméticos dos séculos dezenove e vinte.

Desde os anos cinquenta, Evola e Guénon têm sido os principais teóricos do antimodernismo revolucionário do tradicionalismo. Junto com Eliade, eles se esforçaram em se distinguir do ‘mero’ ocultismo: seus esforços foram (conforme as palavras de Guénon) estabelecer a si mesmos como a verdadeira elite, em oposição à pseudo-elite dos ocultistas. Guénon, Evola e Eliade, todos brincaram com a Teosofia e a magia até os anos vinte, e todos os três eventualmente se fixaram no tradicionalismo como um elitismo mais exaltado, por volta dos anos trinta. O resultado foi que as principais obras filosóficas deles — a Revolta contra o Mundo Moderno, de Evola, Crise do Mundo Moderno, de Guénon, e Cosmos e História, de Eliade — todas são trabalhos anti-históricos que usam a história mundial, especialmente a teoria dos ciclos mundiais, para condenar o momento presente como uma Kali Yuga, o momento menos compreensível da história cósmica. Este pessimismo planetário atingiu um nível de uma catástrofe cósmica. Eliade abraçou esta ideia, com referência ao que disse Guénon: “A era pós-histórica está se desenrolando sob o signo do pessimismo”.

Eliade, então, juntou-se a Guénon e a Evola nos anos vinte e trinta, como tradicionalistas que “pertenciam à mesma comunidade internacional de eruditos dedicados ao estudo e à interpretação de todos os aspectos das realidades religiosas”. Guénon e Evola escreveram suas obras clássicas sobre ameaças observadas ao chamado mundo tradicional nos anos vinte e trinta, Eliade nos anos quarenta. Em nenhum ponto Eliade rejeita o diagnóstico do perigo levantado por seus colegas tradicionalistas fora da academia. A evidência sugere, portanto, que Eliade não discordou deles sobre este ponto. Evidência originada de dentro do mundo iniciático confirma esta impressão. Certamente, como disse ele em uma carta de 26 de setembro de 1949, Guénon via Eliade como uma espécie de companheiro de viagem:

Já que você fala a respeito de Eliade, eu já fiz uma revisão de diversas obras dele, livros e artigos… Você poderá notar que eu o trato com mais cuidado e que tento, acima de tudo, referir-ME ao que é bom; … ele está basicamente muito próximo das ideias tradicionais, mas não se atreve a demonstrar isto em seus escritos, visto que ele teme colidir com opiniões oficialmente aceitas; isto produz uma confusão infeliz… mas esperamos, no entanto, que um pouco de coragem o ajude a ser um pouco menos tímido.

No capítulo sobre silêncio e segredo em The Hermetic Tradition, Julius Evola, seguidor de Guénon e amigo e colega de Eliade, identificou ‘símbolos de uma reintegração espiritual.63 A posição de Guénon é conhecida algumas vezes como ‘integralista’ e assim foi considerada por Evola.64

Em resumo, reintegração era um termo técnico no léxico de Guénon, como já era no vocabulário martinista mais antigo. Em 1935, Evola identificou reintegração como a própria ‘contra-revolução’ em oposição à modernidade catalisada por seu mestre Guénon:

… uma autêntica contra-revolução que começa a predominar e a dar uma direção, em diversos países, a amplos segmentos das novas gerações. Seria interessante determinar até que ponto e de que forma estas correntes, que são radicalmente opostas ã democracia e ao socialismo… podem proporcionar o fundamento superior necessário para começar a árdua tarefa da reintegração no senso indicado por Guénon e, por conseguinte, realizar um trabalho baseado em características metafísicas, transcendentais, éticas e sociais.

À luz do núcleo contra-revolucionário à ‘Tradição’ de Guénon, o leitor não deve ficar surpreso ao encontrar Eliade empregando ‘reintegração’ para descrever (e endossar) um programa político-cultural ostensivamente original:

A missão civilizadora da cristandade foi notável. Cristianizar a herança religiosa da antiga Europa não só purificou esta última, mas também levou para uma nova distribuição espiritual da humanidade todos aqueles que mereciam ser ‘salvos’das antigas práticas, crenças e esperanças do homem pré-cristão; a cristianização das camadas mais pobres da Europa foi afetada graças, acima de tudo, às Imagens: por toda parte elas foram redescobertas e só precisaram ser revalorizadas, reintegradas e receber novos nomes.

Eliade acrescentou que toda reintegração é uma totalização. Esta totalização, por definição, patentemente não exclui a dimensão política da existência social. “Reintegração” foi usada pelos tradicionalistas seguidores de Guénon para referir-se, em um nível, aos processos básicos de retorno a uma condição primordial. De fato, o próprio Guénon usou o termo para referir-se a esse processo na Cabala. Ele fez isto, sugestivamente, ao apontar que a palavra hebraica Kabbalah significa ‘tradição’ e que a ‘reintegração’ conjeturada por Pasqually apontava em direção aos Pardes edênicos da Cabala. ‘Reintegração’, para o tradicionalismo de Guénon, podia ser usado em um senso cabalístico, mas também em um senso político. Eliade usou o termo em ambos os sentidos.