A tese de Murray baseia-se, em larga escala, em dados obtidos na Inglaterra. Presumindo-se a sobrevivência até a Idade Média do culto de fertilidade pré-cristão, não sei como tal deformação auto-contraditória pode ser explicada pela evidência documental acessível naquele país. Contudo, um processo semelhante de desenvolvimento parece ter ocorrido na província italiana de Friule, nos séculos dezesseis e dezessete, e isso nos dá uma evidência comparativa valiosa. Graças à pesquisa de Carlo Ginzburg, sabe-se que um culto popular italiano sofreu modificações progressivas, sob pressão da Inquisição, terminando por assemelhar-se à bruxaria tradicional. Refiro-ME ao culto dos chamados benandanti (“aqueles que estão viajando”, “vagabundos”), documentado pela primeira vez a 21 de março de 1575. Naquele dia, o vicario generale e o inquisidor das províncias de Aquileia e Concórdia receberam a denúncia de que, em algumas aldeias, havia bruxos que se cognominavam benandanti e se declaravam “bons” bruxos, porque combatiam os feiticeiros (stregoni). Pesquisas recentes sobre os primeiros benandanti revelaram os seguintes fatos: eles se reuniam à noite, em segredo, quatro vezes por ano (ou seja, nas quatro semanas de Têmporas); eles chegaram ao local de reunião cavalgando lebres, gatos e outros animais; as assembleias não apresentavam quaisquer traços “satânicos” característicos das reuniões das bruxas: não havia abjuração de fé, nenhuma afronta aos sacramentos ou à Cruz, nenhum culto ao Demônio. A parte central do ritual permanece bastante enigmática. Os benandanti, munidos de ramos de funcho, lutavam contra os bruxos (strighe e stregoni), que estavam armados de juncos enfeixados como vassouras. Os benandanti se diziam capazes de se opor aos maus atos praticados pelos bruxos e de curar as vítimas de seu encantamento. Se os benandanti saíssem vitoriosos dos combates das quatro semanas de Têmporas, as colheitas do ano seriam abundantes; se não, haveria escassez de gêneros e carestia.
Pesquisas posteriores revelaram alguns detalhes referentes ao recrutamento dos benandanti e ao ritual seguido em suas assembleias noturnas. Eles afirmavam que eram requisitados para pertencer ao grupo por um “anjo do céu” e que sua iniciação se dava entre os vinte e vinte e oito anos de idade. A companhia tinha uma organização militar sob as ordens de um capitão e se reunia ao toque de um tambor tocado por ele. Os membros eram obrigados a um juramento de sigilo, e, algumas vezes, havia em tomo de 5.000 benandanti presentes à reunião, alguns vindos da mesma região, mas a maioria desconhecendo-se uns aos outros. Tinham uma bandeira de arminho branco e dourado, ao passo que os bruxos tinham uma bandeira amarela, com desenhos de quatro demônios. Todos os benandanti tinham um traço em comum: ter nascido “com uma camisa”, ou seja, envolvidos na coifa.
Quando a Inquisição – seguindo a concepção estereotipada do Sabá das bruxas – perguntou-lhes se “o anjo” lhes prometia alimentos deliciosos, mulheres e outros entretenimentos licenciosos, os réus orgulhosamente negaram tais insinuações. Eles declararam que apenas os bruxos (stregoni) dançavam e festejavam em suas reuniões. O elemento mais enigmático dos benandanti é sua “viagem” ao local de suas assembleias. Eles afirmavam ir in spirito, enquanto dormiam. Antes da “viagem”, caíam em estado de grande prostração, numa letargia quase cataléptica, durante a qual sua alma podia deixar o corpo. Os benandanti não faziam uso de quaisquer medicamentos como preparação dessa “viagem”, a qual, embora realizada in spirito, era real para eles.
Em 1581, dois benandanti foram condenados como hereges a seis meses de prisão e obrigados à retratação de seus erros. Houve outros julgamentos nos sessenta anos subsequentes e nós veremos suas consequências. Por agora, deixem-nos tentar reconstituir, com base nos documentos da época, a estrutura desse culto popular secreto. Obviamente, o rito central dos benandanti consistia numa batalha cerimonial contra os feiticeiros, a fim de garantir a abundância da colheita, dos vinhedos e de “todos os frutos da terra”. O fato de ser essa batalha travada durante as quatro noites críticas do calendário agrícola deixa bem claro essa finalidade. E possível que esse combate entre benandanti e stregoni fosse um prolongamento de uma configuração arcaica de competições e disputas entre dois grupos opostos, destinadas a estimular as forças criadoras da natureza e também a regenerar a sociedade humana. O combate cerimonial apresentava traços apenas superficiais de cristianização, embora os benandanti afirmassem lutar pela Cruz e “pela fé em Cristo”. Os stregoni também não foram acusados dos crimes teológicos comuns; eram culpados apenas de destruir as colheitas e enfeitiçar crianças. Somente em 1634 (após 850 julgamentos e denúncias feitas aos tribunais de Inquisição em Aquileia e Concórdia) encontramos a primeira acusação a um stregoni por ter praticado o tradicional Sabá diabólico. Com efeito, nos relatos do combate à bruxaria, no norte da Itália, não se faz menção à adoração ao Demônio, mas somente ao culto de Diana.
Contudo, em consequência dos vários julgamentos os benandanti começaram a aceitar o modelo demonológico que a Inquisição persistia em lhes imputar. A partir de um certo momento, não ouvimos mais falar do rito central de fertilidade. Depois de 1600, os benandanti admitiam que praticavam apenas a cura das vítimas dos feiticeiros. Tal concessão tinha os seus perigos porque a Inquisição considerava a habilidade de curar maus feitiços como provas óbvias de bruxaria. Com o passar do tempo, os benandanti não só se tomaram cônscios de sua importância; eles passaram a multiplicar suas denúncias daquelas pessoas supostamente conhecidas como bruxas por eles. Apesar desse antagonismo exacerbado, contudo, os benandanti foram, inconscientemente, se aproximando dos strighe e stregoni. Em 1618, unia mulher benandanti admitiu ter comparecido a um Sabá noturno presidido pelo Demônio, acrescentando, contudo, ter feito isso para obter dele o poder de cura.
Finalmente, em 1634, após cinquenta anos de julgamentos pela Inquisição, os benandanti reconheceram sua identidade com os feiticeiros (strighe e strigoni).
Um réu confessou ter ungido seu corpo nu com um unguento especial e ter ido ao Sabá, onde teria visto muitas bruxas celebrando, dançando e tendo relações sexuais indiscriminadas; mas ele afirmou que os benandanti não participaram realmente da orgia. Alguns anos mais tarde, um benandanti admitiu ter feito um pacto com o Demônio, abjurado Cristo e a fé cristã, finalmente, matado três crianças. Outros julgamentos puseram em relevo elementos inevitáveis do que já era a imagem tradicional do Sabá das bruxas: os benandanti admitiram ir ao Baile dos feiticeiros, venerar o Demônio e beijar suas partes traseiras. Umas das confissões mais dramáticas ocorreu em 1644. O réu descreveu minuciosamente o Demônio e contou co-mo lhe havia entregado a alma. Ainda mais, reconheceu ter matado quatro crianças com maus feitiços. Contudo, quando se retirou para sua cela, em companhia do vigário da diocese, afirmou que sua confissão inteira havia sido falsa e que não pertencia nem ao grupo dos benandanti nem dos stregoni. Os juízes concordaram que o prisioneiro “confessa tudo o que lhe é sugerido”. Não sabemos qual teria sido o veredicto, porque o prisioneiro se enforcou em sua cela. Na realidade, esse foi o último julgamento importante dos benandanti.
Esse exemplo não confirma totalmente a tese de Murray, porque não faz referência ao “deus de dupla face” ou a organizações complexas baseadas na assembleia de treze bruxas”. Além do mais, os benandanti participavam de suas reuniões em ekstasis, ou seja, durante o sono. Contudo, temos, nesse caso dos benandanti, um exemplo do processus através do qual um culto secreto popular de fertilidade transforma-se em prática de magia simples ou até de magia negra, sob pressão da Inquisição. (Eliade)