As palavras Ana ‘l-Haqq (Eu sou Deus) ocorrem em um livro extraordinário composto por Hallaj, o Kitab al-Tawasin, que foi editado em 1913 por M. Louis Massignon. Escrito em prosa árabe rimada e dividido em onze breves seções, ele apresenta uma doutrina da santidade — uma doutrina fundamentada na experiência pessoal e revestida na forma de uma dialética sutil, porém apaixonada. O estilo é tão técnico e obscuro que, mesmo com a ajuda do comentário persa, às vezes só podemos adivinhar o significado que o escritor pretendia transmitir. Em vez de traduzir o texto, o editor dedicou anos de trabalho paciente para compreendê-lo e ilustrá-lo, e o resultado é que sua monografia sobre Hallaj deve ser estudada cuidadosamente por todos os interessados no sufismo. Pois agora está claro que as palavras de Ana ‘l-Haqq não eram uma ejaculação de entusiasmo visionário, mas a fórmula intuitiva na qual todo um sistema de teologia mística se resumia. E esse sistema não é apenas o primeiro no tempo, é também profundamente original. O poder e a vitalidade das ideias desse homem são atestados pela influência que exerceram sobre seus sucessores. Suas cinzas foram espalhadas, varridas, como ele profetizou, por ventos e águas correntes, mas suas palavras viveram depois dele e nós as vemos, durante toda a Idade Média, surgindo como faíscas e acendendo uma nova vida.
Não posso tentar apresentar um relato completo das doutrinas contidas no Tawasin e complementadas por inúmeros fragmentos que Massignon coletou. Podemos começar perguntando: “O que Hallaj quis dizer quando falou de Ana ‘l-Haqq?” A expressão al-Haqq é comumente usada pelos sufis para denotar o Criador em oposição a al-khalq, “as criaturas”, e não há dúvida de que ela tem esse significado aqui: Ana ‘l-Haqq. “Eu sou a Verdade Criativa”, como Massignon o traduziu.
“Hallaj”, diz ele, “embora afirmasse a transcendência da ideia de Deus, não a concebia de modo algum como sendo inacessível ao homem. Da antiga tradição judaica e cristã de que Deus criou o homem à Sua própria imagem, Hallaj deduziu uma doutrina da criação, que tinha sua contrapartida em uma doutrina da deificação: o homem deificado encontra em si mesmo, por meio de um ascetismo (místico), a realidade da imagem divina que Deus imprimiu nele. Possuímos vários fragmentos de Hallajian que não deixam dúvidas quanto a isso. No mais longo deles, Hallaj explica o assunto da seguinte forma: Antes de todas as coisas, antes da criação, antes de Seu conhecimento da criação, Deus em Sua unidade estava mantendo um discurso inefável consigo mesmo e contemplando o esplendor de Sua essência em si mesmo. Essa pura simplicidade de Sua auto-admiração é o Amor, que em Sua essência é a essência da essência, além de toda limitação de atributos. Em Seu perfeito isolamento, Deus ama a Si mesmo, louva a Si mesmo e se manifesta pelo Amor. E foi essa primeira manifestação do Amor no Absoluto Divino que determinou a multiplicidade de Seus atributos e de Seus nomes. Então Deus, por Sua essência, em Sua essência, desejou projetar para fora de Si mesmo Sua suprema alegria, aquele Amor na solidão, para que pudesse contemplá-lo e falar com ele. Ele olhou para a eternidade e trouxe da não-existência uma imagem, uma imagem de Si mesmo, dotada de todos os Seus atributos e todos os Seus nomes: Adão. O olhar divino fez com que essa forma fosse Sua imagem para sempre. Deus a saudou, glorificou-a, escolheu-a e, na medida em que se manifestou por meio dela e nela, essa forma criada tornou-se Huwa Huwa, Ele, Ele!”
- Nicholson (RNPS:30-31) – duas naturezas em Deus
- Nicholson (RNPS:31-33) – Iblis
- Nicholson (RNPS) – Hallaj “Eu sou Deus”