O Cavaleiro, a Morte e o Diabo (1)

(Bertram1932)

O Cavaleiro, a Morte e o Diabo (Dürer) – Wikipédia, a ...

Que prestígio mágico, então, o jovem Nietzsche atribuía a essa gravura em detrimento de todas as outras (enquanto, sintomaticamente, não temos dele nenhum testemunho sobre a Melancolia, exceto alusões em dois poemas de julho de 1871, embora a devoção a Wagner a tivesse tornado mais próxima dele)? Que feitiço ainda o prendia a ela, mesmo após ter superado Schopenhauer e Wagner?

Dentre as respostas de Nietzsche a essa pergunta, a primeira cronologicamente é também a mais importante: trata-se da passagem de O Nascimento da Tragédia que lhe valeu receber a gravura das mãos de admiradores basilienses — um trecho de sua primeira obra, justamente o que Cosima Wagner mais admirava. Nele, Nietzsche caracteriza com precisão e densidade plástica o momento intelectual fértil em que se tornou possível, em sua mente, conciliar a metafísica de Schopenhauer com a vontade musical de Wagner. Em essência, reflete o estado de espírito revelado em sua carta a Rohde de outubro de 1868:

“O que aprecio em Wagner é o mesmo que aprecio em Schopenhauer — a atmosfera moral, um aroma de Fausto, a Cruz, a morte e a sepultura…”

Essas disposições resumem-se, meses depois, em sua carta de aniversário a Wagner com as seguintes palavras de gratidão:

“A você e a Schopenhauer devo ter permanecido fiel até agora à seriedade que distingue a concepção germânica da vida, à contemplação profunda dessa existência tão repleta de enigmas, tão questionável.”

A mesma “seriedade germânica” daquele período da primavera nietzschiana, a mesma postura de abrigar-se à sombra de Schopenhauer e Wagner (este transposto para o plano schopenhaueriano), inspira a passagem emblemática d’O Nascimento da Tragédia sobre Dürer, onde o autor descreve o sentimento do solitário que, sem a “nova fé” em um renascimento helênico iminente e sem esperança no renovo do espírito alemão pela magia inflamada da música, volta-se em vão, no deserto de nossa civilização exaurida, para o “futuro”:

“Um solitário desesperado não poderia escolher símbolo melhor que o Cavaleiro, a Morte e o Diabo de Dürer — o cavaleiro de armadura, com seu olhar de bronze, que, sem se deixar desviar por seus aterradores companheiros, mas também sem esperança, segue sua estrada tenebrosa, só com seu cavalo e seu cão. Nosso Schopenhauer foi um cavaleiro durero, dessa têmpera: sem esperança, mas querendo a Verdade. Ele não tem igual.”

Essa descrição simbólica é complementada por anotações de 1871 para uma revisão d’O Nascimento da Tragédia:

“… O pessimismo germânico — e, ao lado, moralistas rígidos: Schopenhauer e o imperativo categórico!… Precisamos de uma arte especial… A gravura de Dürer do Cavaleiro, a Morte e o Diabo, símbolo dessa vida.”

Juntos, esses trechos revelam a atitude ética do primeiro Nietzsche: “Cruz, morte e sepultura”, mas também o vontade de viver latente, a obrigação moral inflexível inerente ao pessimismo germânico — o romantismo da morte schopenhaueriano e a coragem da verdade brutal; o êxtase juvenil de uma “desesperança” dolorosamente consciente e a arte singular que dela brota; o imperativo kantiano e o Trotzdem luterano. Em última análise, os dois demônios dessa sétima solidão, desse isolamento perigosamente “protestante” do indivíduo, que inspirou a Lutero palavras de resignação corajosa:

“Vossa vida é uma cavalaria… Cada um deve estar armado e pronto para lutar contra o Diabo e a Morte… Nessa hora, não estarei ao teu lado, nem tu ao meu.”

Demônios dessa funesta vontade de saber, que só pode ser uma “vontade de morte”:

“Compreender é um fim” — o conhecimento é verdadeiramente a morte.

Para Nietzsche, tudo isso irrompe, em relâmpagos e tempestades, da grandiosa obscuridade dessa gravura — tão alemã em sua exuberância e tão supra-alemã em seu dualismo nietzschiano: na gênese híbrida (artística e filosófico-humanista), na forma que mescla estudos de Leonardo da Vinci e Mantegna com o gosto nórdico por fantasmas diabólicos, florestas solitárias e o romantismo dos castelos feudais.

Mas o que fascina Nietzsche nessa imagem, reflexo do espírito da Reforma iminente, é sobretudo a figura do “Corajoso”, o “Trotzdem” calmo e inflexível de uma alma que escolhe e persegue, cavalheiresca, o caminho indicado por uma força demoníaca “entre os tempos”. É o cavaleiro da Verdade (cristã ou não), a Verdade do valente, custe o que custar — inclusive a própria felicidade. Nada de revolucionário nesse cavaleiro: sem fanatismo, sem ódio, antes um reformador como Hutten ou o Lutero de Worms, que permanece sozinho porque não pode agir de outro modo e não se abstém de confessar sua fé:

“Ainda que houvesse tantos demônios quanto telhas nos telhados.”

Num aforismo rimado de 1884, já longe de Schopenhauer (há muito “superado”), Nietzsche evoca, não por acaso, a liberdade luterana do cristão que, senhor de todas as coisas, “a ninguém se sujeita”:

“Caducou tudo o que ele ensinou, / Mas o que ele viveu permaneceu: / Olhai-o bem… / De ninguém foi servo!”

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