ARENDT, H. Pensar sem corrimão: Compreender (1953-1975). Rio de Janeiro, RJ: Bazar do Tempo, 2021.
Num terceiro plano, que claramente era o de Dostoiévski, abordamos a mesma questão do ateísmo, mas de forma muito mais séria: o tema central em toda a obra de Dostoiévski não é a existência ou não de Deus, mas a possibilidade de o homem viver sem acreditar em Deus. Antes, porém, de discutirmos isso, devemos notar que essa questão leva dúvida à crença – não de fora, como faz a ciência (em que a resposta é: a ciência não levanta essa questão nem responde a ela), mas de dentro: se eu acredito porque não suporto não acreditar, eu claramente não acredito. Dostoiévski sabia disso, essa é a sua grandeza. Ele não acreditava que ele ou Chátov trariam a salvação para a Rússia ou para a humanidade; isso só poderia ser realizado por aqueles que nunca tiveram esse tipo de pensamento, que simplesmente acreditam, os simplórios, como Mária, ou o Idiota. O único crente dentre os personagens de Dostoiévski que não é simplório é Aliócha – e esse romance não foi acabado.
Nos Cadernos, está a questão mais central e urgente: é possível ter fé sendo civilizado, isto é, europeu? Pois a fé não é uma noção vaga sobre um ser supremo, mas sobre a divindade de Cristo. E isso significa duas coisas de fato distintas, embora, para Dostoiévski, não completamente: a) a legitimidade da moralidade depende da revelação. Se uma parte da revelação for destruída, toda a cristandade e a moralidade cristã vão colapsar. Se não é possível acreditar, então é justificável que se peça a destruição total. E, ao contrário, quando o sofrimento prolongado que acaba em morte se confronta com o sofrimento breve seguido de morte, o último é mais humano. Daí se deduz que a humanidade não pode sobreviver sem fé. b) o Verbo fez-se carne em Cristo, a encarnação: a possibilidade do divino na terra depende desse acontecimento. É, de acordo com Dostoiévski, a única salvação para o desespero. O representante do verdadeiro não crente é Stavróguin, o herói que “não tem nem sentimento nem conhecimento do bem e do mal”. É justamente essa indiferença a sua ruína: “A vida o entediava a ponto da estupefação.” Ao mesmo tempo, ele tem o sentimento da total liberdade. Mas, para Dostoiévski, a moralidade é entendida como um código de um mestre diante de quem o homem se sujeita: o mestre é Deus e o exemplo é Cristo. O homem pertence a alguém (não a algo) que é tão transcendental quanto superior a ele.
Os demônios se preocupa de forma mais explícita com essa questão do que com qualquer outra; isto é, tenta provar as consequências desastrosas da perda da fé. Trata-se de um argumento negativo. Mas, por ser um romance, não é um argumento e possui uma força considerável, porque a história e os personagens são verdadeiros. Como argumento, formula-se assim: se tirarmos Deus como o único a quem o homem deve obediência, ainda assim o homem continuará um servo. Não serve mais a Deus, mas serve a ideias; ele já não é propriedade de Deus, mas possuído por ideias que agem como demônios. Não são ideias que o homem possui, mas ideias o possuem. A cabeça de Stiepan Trofímovitch está repleta de ideias nobres e elevadas, e ele não só produz um filho com noções criminosas, mas ele próprio, em sua absoluta irreflexão, beira a criminalidade – na negligência e nas fraudes contra o filho; ao vender Fiedka, o criminoso, por causa de uma dívida de jogo, entre outras coisas. Ele não é mau, suas ideias apenas expulsaram de sua mente qualquer tipo de consideração mais comum. Em vez servir a um mestre legítimo, o homem torna-se lacaio de suas ideias – de fato, o “servilismo do pensamento” é mencionado mais de uma vez por Chátov. É a “dominação dos fantasmas” – e fantasmas porque não há realidade por trás deles. Isso vale até mesmo para a mais nobre dessas ideias, a de uma liberdade absoluta provada pelo suicídio. Kiríllov escuta de Vierkhoviénski, o qual, aliás, não é servo de uma ideia: “Você não devorou a ideia, a ideia é que o devorou.” Essa estranha possessão ocorre porque pensamos ideias não apenas com nosso cérebro; uma ideia “é sentida” e “posta em prática”.
A mais potente e fascinante dessas ideias que tomam o homem é a da destruição total, porque ela nasce diretamente do vácuo e é a mais poderosa inversão da Criação. E como esse vácuo não é apenas a ausência da crença em Deus, mas também da fé na encarnação – o Verbo fez-se carne –, essa ideia encontra sua encarnação no homem vivo. “A ideia que o toma o domina totalmente, não tanto controlando o seu pensamento, mas usando-o como um meio para sua incorporação. E a partir do momento que a ideia está encarnada ela exige a imediata transformação em ação”, pois “mudar a convicção de alguém é mudar imediatamente toda a sua vida” (Cadernos). Tal fenômeno – a ideia que é personificada e tornada ação – é considerado com a maior seriedade; e, de acordo com Dostoiévski, é o que distingue os ideólogos russos de seus congêneres ocidentais. Os homens são ideias ambulantes, executando o que as ideias exigem, implementando a lógica delas. Como eles tiveram a fé verdadeira, tornam-se ainda mais perigosos ao perdê-la. Por outro lado, a encarnação das ideias significa que seus emissários podem se transformar em ídolos. Assim como Stavróguin para Vierkhoviénski: “Sem você sou uma mosca, uma ideia dentro da garrafa, Colombo sem América.” O ídolo significa que, em vez de Deus se tornar homem, o homem se torna Deus. Vierkhoviénski, que não acredita em progresso, não é governado por uma ideia, como os outros o são pelo autoengano. Stavróguin não é governado por uma ideia porque ele “nunca pode perder a razão e se interessar por uma ideia a esse ponto”; no entanto, justamente por causa dessa incapacidade, ele pode se tornar um ídolo para Vierkhoviénski. O verdadeiro oposto do bem não é o mal ou o crime, nem Fiedka, e sim Stavróguin, que é simplesmente indiferente. O novo Deus seria a pura indiferença.
A força desse livro assenta-se não no argumento, mas na apresentação concreta dos personagens e da intriga. O elemento mais persuasivo, no entanto, é a incontestável grandeza do conteúdo da crença, em oposição à superficialidade das ideias modernas. Se os homens se tornam o que pensam, não seria melhor ficarem com a noção de Cristo, mesmo que ela não fosse verdade? Chátov diz a Stavróguin, que havia alimentado esse pensamento (o pensamento de um descrente!): “Mas você não ME havia dito que se lhe fosse matematicamente provado que a verdade exclui Cristo, preferiria ficar com Cristo e não com a verdade?”. (É estranho que Dostoiévski nunca se pergunte como as pessoas viviam antes de Cristo ou como viviam em países não cristãos. Ele parece acreditar que cada povo tem seus deuses e deve ficar com eles; emigrantes não apenas perdem seu povo, mas também seus deuses. Esse é, bem entendido, um pensamento inteiramente ateístico.)