Panikkar Deus

Raimon Panikkar — A EXPERIÊNCIA DE DEUS
Prólogo
Traduzido da versão francesa “L’Expérience de Dieu

É preciso muita temeridade, ingenuidade e inocência para publicar hoje em dia um livro com este título, e ainda mais sem notas. A ocasião me foi dada por uma semana de conferências que fiz sobre este tema para professores de teologia no monastério beneditino de Silos, faz alguns anos. Como o auditório era composto sobretudo de cristãos, a atmosfera destas páginas é cristã e cristão sua linguagem, bem compreensível, creio, para aqueles que não pertencem a esta religião. Em minha conta pesa o fato de ter escrito um livro de mil páginas sobre a “experiência védica” que aparecerá proximamente em castelhano, em francês e em italiano.

Quando se trata de falar da experiência suprema a palavra mesma “Deus” é tendenciosa, embora não possamos fazer de outro modo senão empregá-la ou outra que seja. Me apresso a princípio em notar que apesar de sua ambiguidade, a experiência de Deus é uma “impossibilidade”.

Não há experiência possível de Deus, pelo menos no sentido monoteísta da palavra. Frequentemente se aprisionou Deus — a expressão acadêmica seria “se quis apreendê-lo” — em nossa contingência e nossa condição de criatura.

Não menos há experiência de Deus por si (genitivo subjetivo). Aí só pode haver genitivo em Deus, pois isso não adicionaria nada ao que ele é. O verbo mesmo, “ser”, é inapropriado.

E no entanto a frase não cessa de revir, na tradição e neste livro. Ela serviu de referência convencional para designar o supremo, o infinito, o misterioso, o desconhecido, o inapreensível. Mas, ainda uma vez, as palavras são função de um código miticamente convencional. O título é portanto em si um paradoxo, paradoxo que mantemos pois a única linguagem possível é a linguagem paradoxal e “oximórica” (NOTA ABAIXO). Serve a relativizar tanto a linguagem como nossa concepção mesma do divino. Mas relatividade não é relativismo.

É a tudo isso que este livro faz alusão.

NOTA: Me permito aqui uma única exceção à decisão de não incluir notas neste livro para lembrar a significação da palavra “oximoro”: o fato que esta palavra não seja mais utilizada é em si inquietante e significativo. O esquecimento deste figura retórica revela a influência do pensamento unívoco e o temor que tem a cultura moderna da polissemia de um lado, da ambivalência do outro. Mais ainda, seu esquecimento mostra que estamos cortados do verdadeiro pensamento, que é fundamentalmente comparativo pois pensamos em nos colocando sobre uma balança, para “sopesar” corretamente as coisas. O oximoro, jogando com a etimologia de oxus, aguçado, pontudo, penetrante e moros, embotado, sem ponta, donde inerte, estúpido, louco, etc, seria então o aguçado-embotado, a loucura penetrante, a ponta da estupidez, a ponta que penetra o mole. O oximoro harmoniza duas noções que, separadamente, são contrárias, como o famosos festina lente, ou loucamente sábio, cruel bondade, etc. O paradoxo põe as duas opções (doxai) uma ao lado (para) da outra, o oximoro faz penetrar uma ideia na outra. O paradoxo nos confronta ao dualismo, o oximoro ao não-dualismo, ao Advaita. O pensamento oximórico não se deixa reduzir ad unum, à unicidade ou a univocidade; haveria contradição e a contradição não pode se pensar. Se assemelha todavia à visão normal que nos faz ver as coisas em suas três dimensões embora não possamos as recopiar exatamente no plano bidimensional da razão.


Excertos:

Raimon Panikkar