Excerto de PESSOA, Fernando. Livro(s) do Desassossego. São Paulo, 2017 (edição digital, formato epub)
Muitos têm definido o homem, e em geral o têm definido em contraste com os animais. Por isso, nas definições do homem, é frequente o uso da frase “O homem é um animal…” e um adjectivo, ou “O homem é um animal que…” e diz-se o quê. “O homem é um animal doente”, disse Rousseau, e em parte é verdade. “O homem é um animal racional”, diz a Igreja, e em parte é verdade. “O homem é um animal que usa de ferramenta”, diz Carlyle, e em parte é verdade. Mas estas definições, e outras como elas, são sempre imperfeitas e laterais. E a razão é muito simples: não é fácil distinguir o homem dos animais, não há critério seguro para distinguir o homem dos animais. As vidas humanas decorrem na mesma íntima inconsciência que as vidas dos animais. As mesmas leis profundas, que regem de fora os instintos dos animais, regem, também de fora, a inteligência do homem, que parece não ser mais que um instinto em formação, tão inconsciente como todo instinto, menos perfeito porque ainda não formado.
“Tudo vem da sem-razão”, diz-se na Antologia Grega. E, na verdade, tudo vem da sem-razão. Fora da matemática, que não tem que ver senão com números mortos e fórmulas vazias, e por isso pode ser perfeitamente lógica, a ciência não é senão um jogo de crianças no crepúsculo, um querer apanhar sombras de aves e parar sombras de ervas ao vento.
E é curioso e estranho que, não sendo fácil encontrar palavras com que verdadeiramente se defina o homem como distinto dos animais, é todavia fácil encontrar maneira de diferençar o homem superior do homem vulgar.
Nunca me esqueceu aquela frase de Haeckel, o biologista, que li na infância da inteligência, quando se leem as divulgações científicas e as razões contra a religião. A frase é esta, ou quase esta: que muito mais longe está o homem superior (um Kant ou um Goethe, creio que diz) do homem vulgar que o homem vulgar do macaco. Nunca esqueci a frase porque ela é verdadeira. Entre mim, que pouco sou na ordem dos que pensam, e um camponês de Loures vai, sem dúvida, maior distância que entre esse camponês e, já não digo um macaco, mas um gato ou um cão. Nenhum de nós, desde o gato até mim, conduz de facto a vida que lhe é imposta, ou o destino que lhe é dado; todos somos igualmente derivados de não sei quê, sombras de gestos feitos por outrem, efeitos encarnados, consequências que sentem. Mas entre mim e o camponês há uma diferença de qualidade, proveniente da existência em mim do pensamento abstracto e da emoção desinteressada; e entre ele e o gato não há, no espírito, mais que uma diferença de grau.
O homem superior difere do homem inferior, e dos animais irmãos deste, pela simples qualidade da ironia. A ironia é o primeiro indício de que a consciência se tornou consciente. E a ironia atravessa dois estádios: o estádio marcado por Sócrates, quando disse “sei só que nada sei”, e o estádio marcado por Sanches, quando disse “nem sei se nada sei”. O primeiro passo chega àquele ponto em que duvidamos de nós dogmaticamente, e todo homem superior o dá e atinge. O segundo passo chega àquele ponto em que duvidamos de nós e da nossa dúvida, e poucos homens o têm atingido na curta extensão já tão longa do tempo que, humanidade, temos visto o sol e a noite sobre a vária superfície da Terra.
Conhecer-se é errar, e o oráculo que disse “Conhece-te” propôs uma tarefa maior que as de Hércules e um enigma mais negro que o da Esfinge. Desconhecer-se conscientemente, eis o caminho. E desconhecer-se conscientemente é o emprego activo da ironia. Nem conheço coisa maior, nem mais própria do homem que é deveras grande, que a análise paciente e expressiva dos modos de nos desconhecermos, o registro consciente da inconsciência das nossas consciências, a metafísica das sombras autónomas, a poesia do crepúsculo da desilusão.
Mas sempre qualquer coisa nos ilude, sempre qualquer análise se nos embota, sempre a verdade, ainda que falsa, está além da outra esquina. E é isto que cansa mais que a vida, quando ela cansa, e de que o conhecimento e meditação dela, que nunca deixam de cansar.
Ergo-me da cadeira de onde, fincado distraidamente contra a mesa, me entretive a narrar para mim estas impressões irregulares. Ergo-me, ergo o corpo nele mesmo, e vou até à janela, alta acima dos telhados, de onde posso ver a cidade ir a dormir num começo lento de silêncio. A lua, grande e de um branco branco, elucida tristemente as diferenças socalcadas da casaria. E o luar parece iluminar algidamente todo o mistério do mundo. Parece mostrar tudo, e tudo é sombras com misturas de luz má, intervalos falsos, desnivelamentos absurdos, incoerências do visível. Não há brisa, e parece que o mistério é maior. Tenho náuseas no pensamento abstracto. Nunca escreverei uma página que me revele ou que revele alguma coisa. Uma nuvem muito leve paira vaga acima da lua, como um esconderijo. Ignoro, como estes telhados. Falhei, como a natureza inteira.