Pessoa: Natureza e realidade

Excertos do livro organizado por António Quadros, “A procura da verdade oculta”. Fragmentos do acervo do autor sobre tempo, espaço, ser, matemática, realidade, categorias… [Texto possivelmente de 1915-1916]

1 — TEMPO, ESPAÇO E SER

O tempo em si contém a possibilidade de todas as durações: o espaço em si a possibilidade de todos os tamanhos, de todas as extensões; a forma em si a possibilidade tanto do círculo como do triângulo, a possibilidade de todas as formas.

Assim como o tempo-em-si, isto é, a eternidade, é inconcebível, da mesma maneira a forma em si é impensável. Só compreendemos o tempo quando ele se materializa, se fenomeniza, em uma duração qualquer; só compreendemos a forma quando ela se determina como, por exemplo, num círculo ou num triângulo.

(Para que a forma seja no espaço é necessário que à nossa concepção de círculo estivesse ligado um tamanho determinado.)

Tudo isto quer dizer simplesmente uma coisa: que o tempo, a forma, etc, só se tornam perceptíveis quando encontram um objeto. Ora, para isto assim ser, é lógico que o objeto em si não conheça o tempo e o espaço seja extemporâneo e imenso, anterior a tempo e espaço, se assim se pode falar. [Texto provavelmente de 1912-1914]

O tempo e o espaço não podem por si próprios originar a individualidade. O Ser é necessário. Um homem morto ocupa Tempo e Espaço, mas não tem individualidade, não tem Ser. [Presumivelmente de 1907]

Em cada instante que passa decorre uma eternidade, visto que cada instante, infinitamente divisível, é infinito idealmente, isto é, eterno.

A divisão do tempo é uma convenção Realmente cada divisão dessas (seja qual for) é uma eternidade.

O célebre argumento de éternité énubée é falso no que quer provar, por ser inconcebível uma éternité énubée.

Se avançamos para o infinito não avançamos realmente, mas estamos essencialmente estacionários. [Presumivelmente de 1907]


2 – MATEMÁTICA E REALIDADE

Para se poder conceber a infinita divisibilidade da matéria, é insuficiente que ela se conceba em pensamento. O que o pensamento concebe como infinitamente divisível não é a matéria, é a ideia abstrata de matéria. Desde o momento que conceba a divisibilidade da matéria tem de se conceber um ente que divide e um instrumento com que se divide.

Para conceber pois, propriamente, a infinita divisibilidade da matéria, temos que conceber ou um indivíduo divididor que num tempo limitado dividisse a matéria infinitamente, ou um instrumento infinitamente perfeito pelo qual essa divisão infinita se fizesse (excluída que fosse, para pôr o problema no seu devido campo, a ideia de tempo). Ora isto é impossível.

Igualmente inconcebível é o infinito do tempo e do espaço como realidade. Desde o momento que se supõe o espaço infinito, fica posto este problema: dois pontos separados nesse espaço são equidistantes do limite (infinito) desse espaço; são portanto coincidentes. Por isso ou não existem lugares, e então não há espaço, ou isso é impossível, e, então, o espaço não é infinito.

Com o tempo, o mesmo se dá. Dois momentos do tempo estão à mesma distância do princípio inexistente (suposto tal) do tempo. São portanto o mesmo momento. Mas se dois momentos diferentes são o mesmo, nada decorreu, não há portanto Tempo.

A verdade é que em ambos os casos se substitui à ideia de tempo e de espaço, a ideia da ideia do tempo e do espaço, que em ambos os casos se considerou o espaço abstractamente, como não contendo lugares — o que viola a sua natureza essencial — e o tempo não contendo momentos, isto é, como não durando, o que é igualmente falso, e contra a própria noção de tempo. Tem-se feito filosofia refractivamente, não pensando as coisas, mas pensando os nossos pensamentos.

Quase como queria Spinosa, dum lado está o pensamento, do outro a matéria. Qualquer conceito matemático, como o que uma quantidade dividida por zeroinfinito, indica claramente que quantidade não é divisível, porquanto o divisível por qualquer coisa não pode nunca dar uma coisa maior que ela; e supondo que zero não divide realmente, nesse caso não há divisão.

X dividido por infinitozero indica claramente que X não é divisível por infinito, se tal divisão dá zero, isto é, nada, pois que uma coisa divisível por outra dá qualquer coisa; ou então X não é divisível por nada.

A matemática é uma ciência só dentro de si própria. Não é aplicável à realidade. [Este texto, possivelmente de 1916, tem a indicação: Uma teoria materialista.]


3 – AS CATEGORIAS DA REALIDADE

Os três dados da experiência são a pluralidade, a relação e o limite. Qual deles é fundamental?

A relação não pode ser, porque a relação, salvo a relação lógica, só pode ser de uma coisa para outra, e assim envolvendo o conceito de dois, o conceito de pluralidade está estabelecido.

Restam a pluralidade e o limite. Qual condiciona o outro? Uma coisa isolada pode ser considerada como tendo limite, mas uma pluralidade de coisas que não pode ser considerada senão como tendo cada coisa um limite, porque, se o não tivesse, não haveria uma pluralidade, senão um continuum, isto é, uma unidade.

Pode, porém, qualquer coisa ser considerada como isolada, salvo logicamente? E não se afastou já a ideia de lógica na de relação? (A relação de uma coisa consigo própria é simplesmente a identidade dessa coisa consigo mesma.)

Na ordem da experiência, todos os três conceitos são essenciais. Aí, portanto, formam um todo lógico, em que nenhum é anterior a outro, sendo, os três, dados simultaneamente à mente. Na ordem lógica, porém, a relação não pode existir sem pluralidade, pelo menos, sem pluralidade implícita portanto; e a pluralidade não pode existir sem que haja um princípio de distinção, uma possibilidade de pluralidade; e essa possibilidade de pluralidade é o limite.

O que é o limite? Tendo-o nós definido como anterior logicamente à pluralidade e à relação, não podemos definir limite, logicamente, em relação àqueles dois conceitos. Não podemos, já, dizer que o limite de uma coisa é aquilo por onde se distingue de outra, porque isso é basear o conceito de limite no de pluralidade, ao qual já vimos que ele era anterior; nem podemos dizer que o limite de uma coisa é derivado da relação entre ela e outra, porque o contrário é que, na ordem lógica, acontece, e na ordem da experiência não há antecedência de um ou de outro.

Temos de considerar o objeto isolado, e definir limite em relação a ele apenas. Como?

Procedamos negativamente, para esclarecer. O limite não é essa coisa, ela própria; mas sem o limite essa coisa não é ela própria. Isto parece aproximar o limite do conceito de causa: mas a causa é pensada externa ao efeito, e o limite é por natureza pensado interno, ou coextensivo com a ideia dessa coisa. O limite é portanto aquilo sem o que uma coisa não existe, mas que nem é a própria coisa, nem externo a essa coisa. A definição parece abstrata e inútil; mas se se reparar que, partindo de um conceito que concebemos primordial da experiência, o não podemos — quer lógica quer (…) — definir por conceitos posteriores, a definição não pode envolver senão anterioridades lógicas, e essas são a própria coisa apenas.

Mesmo causa é conceito ainda logicamente por nascer, na altura em que vamos do nosso inquérito.

Definindo limite da única maneira logicamente possível, vemos que ele pressupõe apenas um conceito anterior, porque é em relação a esse único conceito que é definido.

Esse conceito é o da coisa, que tem o limite. Essa coisa não pode ser determinada, considerada à parte do limite, porque ou é determinada pelo limite, que lhe é posterior, ou pela relação com outras coisas, o que envolve pluralidade e relação, posteriores lógicos todos.

(Entre a coisa e o seu limite não há relação, porque havendo só duas relações possíveis e pensáveis — a de identidade e a de não identidade, e não sendo o limite nem idêntico nem inidêntico à coisa que limita, não há relação senão por deficiência de linguagem para dizer de outra maneira.)

Temos, pois, como dados primordiais da experiência, dados lógicos fundamentais — (1) o ser, (2) o limite.

Anterior à experiência, o conceito de ser, o conceito abstrato de ser abstrato; o limite, para que o haja, precisa ser.

O limite, pode dizer-se, tem por limite o ser — pois que o ser não é externo ao limite, porque não é uma coisa nem é o próprio limite, porque ser é ser e limite é limite. Podemos tirar outra conclusão, ou corolário: o anterior lógico é o limite do seu posterior imediato.

Ao mesmo tempo sem ser não há limite.

Prossigamos.

Ser. Espaço Movimento
Limite. Linha Alteração
Pluralidade. Plano
Relação. Volume
Tempo. (Duração.) Corpo Consciência

Ser, Limite, Pluralidade, Relação, Tempo, Espaço, Corpo, Movimento, Alteração, Consciência.

Adentro de cada uma destas categorias da realidade, nós temos o mesmo fenômeno. Nitidamente se vê no caso do Espaço.

Adentro de cada uma destas categorias se dá o caso que se dá de umas para as outras. Assim, o espaço: a linha é limitada pelo anterior, o ponto; a linha limita o plano; o plano limita o volume; o volume limita o corpo.

Fernando Pessoa (1888-1935)