Fragmentos dos escritos do espólio de Fernando Pessoa, organizado por Pedro T. Mota, sobre o tema «ROSEA CRUZ».
«E a Gnose», perguntou ele, «o que sabem os senhores do que foi realmente a Gnose? Tratam-na ainda, e a tratarão sempre, como uma seita religiosa, um movimento herético. Há, é verdade, quem se lembre de a considerar como uma sobrevivência de qualquer cousa anterior ao Cristianismo. A ideia é justa, muito justa, mas como é errado, ao mesmo tempo!»
«Assim como na vida há dois lados — o lado pelo qual ela é exterior, luz, vida pratica, logar do senso comum, da ciência, da arte, da filosofia, e o lado pelo qual ela é O DESCONHECIDO — assim há duas ciências — a ciência que o senhor conhece, a metafísica que sabe, e a outra ciência, a que se não sabe ostensivamente nunca, a que não se socializa ou torna conhecida, a ciência oculta, a magia, que os senhores não só ignoram, como ignorarão sempre, porque, pela natureza das coisas, são condenados a ignorá-la. Bem sei, bem sei que a curiosidade moderna se vai aproximando em alguns pontos da ciência; mas á medida que ela se aproxima, a outra recua. O milagre — isso a que chamam milagre existe, creia-o senhor. Mas quando se tenta investigá-lo desaparece. Parece á razão vulgar — e está na natureza útil das coisas que assim seja que é porque o milagre não existe. Não é. é porque ele não é sociável, não é passível para a ciência exterior, que em livros e experiências se estuda e ensina.»
Verão o que se averígua dos fenômenos chamados do espiritismo. Não se averiguará senão, quando muito, certas coisas ininteressantes. O modo real e íntimo como eles se dão — esse não é revelável.
Ninguém lê os livros de ciência hermética que se tem publicado. E quem os lê ou os põe de parte rindo, ou os abandona tediento de os não ter podido compreender. É que na própria natureza da magia está providencialmente envolvida a impossibilidade de ela — a ciência suprema — se poder tornar publica como ciência. Mais lhe direi — porque não ha mal em dizer lho — o saber da ciência real anda envolvido em nem sequer pensar em divulgá-la. As razões lógicas e superficiais, já lhas dei. As razões intimas e essenciais nem sequer posso pensar em querer dar lhas. Não me compreende bem, porque isto não é para que se compreenda? Lembra-se do que dizia Jesus? «Que quem compreender isto que o compreenda? «É o filósofo hermético a falar da ciência real aos outros. Mas por mais que queira não quer nunca revelá-la. De maneira que tudo o que diz, tem de o fechar com essa frase «quem poder compreender que compreenda». E ha quem possa compreender. Há iniciados ab origine. Digo-lhe isto, porque não lhe revelo nada. Quando perceberão os senhores o sentido real, portanto não literal, daquela frase de Jesus: e alguns foram eunucos desde o ventre materno, e outros fizeram-se eunucos pelo reino dos céus». Que ingenuidade a sua julgando que eunuco quer dizer eunuco ou que reino dos céus tem que ver com reino ou céus ou qualquer coisa que nas palavras transpareça!»
Tudo realmente mas filosoficamente expondo, reduz-se a isto: que toda a vida é um mistério, todos os atos da vida tem um lado pelo qual são mistério, outro pelo qual não o são. O primeiro é o que bate na consciência real das coisas; o outro o que está chegado à inconsciência da vida pratica. Quem sabe, por exemplo, o significado místico e transcendente da cópula? Não ria; nada há que rir. Tudo isto é mais serio que quanto de serio há na vida aparente.
Depois os senhores não sabem a razão intima e oculta da vida universal; não sabem o quanto tudo está providenciado, como a ação mais insignificante tem o seu logar oculto e místico no propósito progressivo das coisas. Porque é que em todos os combates em que entrou Napoleão não foi atingido por uma bala? Se os senhores soubessem porque foi!
Discutem outros dos vossos cientistas sobre se Jesus Cristo existiu ou não. Se soubessem! Se soubessem o que é existência! Mas não o sabem, não o podem saber e errarão sempre. O senhor já leu o opúsculo de Pères provando que Napoleão nunca existiu? Já? E que achou?
«Achei curioso, e cheio de coincidências estranhas realmente. Também a mitologia oferece estofo para…»
Se o senhor soubesse o que é um mito! E achou curioso o livro? E nunca lhe passou pela cabeça que ele é mais que curioso, e que aquelas coincidências possam ter um sentido oculto e estranho? Nunca sequer perguntou a si se há realmente coincidência: coisas fortuitas, acasos? E o senhor tipifica, em si neste momento, a orientação da ciência e da sabedoria brancas. Que pena eu nem sequer poder pensar dizer-lhe a verdade que o senhor, aliás, não perceberia!
E já pensou no que é um Grande Homem na história e como é e porque causas ele aparece? Nunca?
Deixe os espiritas e os teósofos orientais. São quando muito público para iniciados. Nada mais são. Acredite. E acredite também que a ciência hermética é uma ciência, e nada tem com disciplinas de vontade, saber querer e outras coisas assim. Tudo é ciência, sabedoria — no desejo, vontade ou concentração. Essas são coisas que fatalmente seguem, porque o sentimento e a vontade estão à altura que as puser a ciência, a ciência, não a inteligência ou o saber. Mas isto é liminar para o mistério. De resto já nas minhas palavras lhe disse o mistério todo. Disse lho porque o sr. não percebe, nem perceberá nunca, porque não pode perceber. Quem compreender isto, — é a velha frase — que o compreenda».
«O sr. considera, por exemplo, pura imaginação e impossibilidade o Metzengerstein de Poe?1
«Mas com certeza…»
«Ingenuidade, creia. Ingenuidade e mais nada.»