Schuon (FSCI) – Profissão de Fé do Islã

A doutrina do Islame prende-se a duas afirmações: “Não há divindade (ou realidade, ou absoluto) senão a única Divindade (ou Realidade, ou Absoluto)” (la ilaha illa Allah), e “Muhammad” (o Glorificado, o Perfeito) é o Enviado (o porta-voz, o intermediário, a manifestação, o símbolo) da Divindade” (Muhammadun Rasul Allah); essas são a primeira e a segunda “Profissões” (shahadah) de fé.

Estamos aqui em presença de duas afirmações, de duas certezas, de dois níveis de realidade: o Absoluto e o relativo, Causa e efeito, Deus e o mundo. O Islã é a religião da certeza e do equilíbrio, como o Cristianismo é a religião do amor e do sacrifício. Com isso não queremos dizer que as religiões detêm monopólios, mas que cada uma salienta um ou outro aspecto da verdade. O Islã procura implantar a certeza — sua fé unitária apresenta-se como algo notoriamente evidente sem, de forma alguma, renunciar ao mistério. E baseia-se em duas certezas axiomáticas, uma referente ao Princípio, que é tanto Ser como Supra-Ser, e outra referente a manifestação, tanto formal como supraformal. Assim, é uma questão, de um lado, de “Deus” — ou da “Deidade”, no sentido em que Eckhart usou esse termo — e de outro, da “Terra” e do “Céu”. A primeira dessas certezas é que “só Deus é” e a segunda, que “todas as coisas estão ligadas a Deus”1. Em outras palavras: “nada é absolutamente evidente com exceção do Absoluto”, seguindo-se esta verdade: “Toda manifestação, e portanto tudo que é relativo, está ligado ao Absoluto”. O mundo depende de Deus — ou, o relativo, do Absoluto — tanto em relação a sua origem como a seu fim. A palavra “Enviado” na segunda shahadah, enuncia, portanto, primeiro uma causalidade, e em seguida uma finalidade; a primeira referindo-se particularmente ao mundo e a segunda, ao homem2.

Todas as verdades metafísicas estão compreendidas no primeiro desses testemunhos e todas as verdades escatológicas no segundo. Mas também poderia ser dito que a primeira shahadah é a fórmula do discernimento ou “abstração” (tanzih), enquanto a segunda é a fórmula da integração ou “analogia” (tashbih). Na primeira, a palavra “divindade” (ilah) — considerada aqui em seu sentido corrente, ordinário — designa o mundo na medida em que é irreal, porque só Deus é real. O nome do Profeta (Muhammad), na segunda, designa o mundo na medida em que é real, pois nada pode existir fora de Deus; em certos aspectos, tudo é Ele. Compreender a primeira shahadah significa, antes de tudo — “antes de tudo” porque essa shahadah inclui a segunda de modo notável — tornar-se completamente consciente de que só o Princípio é real e de que o mundo, embora “exista” em seu próprio nível, “não é”. Em certo sentido isso significa, portanto, perceber o vazio universal. Compreender a segunda shahadah significa, antes de tudo3 tornar-se consciente de que o mundo, ou a manifestação, não é “outra coisa” que não Deus ou o Princípio, já que, na medida em que tem realidade, só pode ser aquilo que unicamente “é”, ou, em outras palavras, só pode ser divino. Perceber essa shahadah significa assim ver Deus em todo lugar e tudo n’Ele. “Aquele que ME viu, viu a Deus”, disse o Profeta. Ora, tudo é o “Profeta”, quanto à perfeição de existência e quanto à perfeição de modo ou de expressão4.


  1. Essas duas relações também são expressas na seguinte fórmula do Corão: “Em verdade, pertencemos a Deus (inna lilLahi) e, em verdade, a Ele retornaremos (wa inna ilayhi raji un)”. A bismilah, a fórmula: “Em nome de Deus, o infinitamente Bom, o sempre Misericordioso (BismiLlahi ‘Rrahmani ‘Rrahum)”, expressa igualmente a dependência de todas as coisas ao Princípio.  

  2. Ou, novamente, a causa ou origem está na palavra rasul (Enviado) e a finalidade na palavra Muhammad (Glorificado). A risalah (a “coisa enviada”, a “epístola”, o Corão) “desceu” na laylat al-Qadr (a “noite do Poder que é o destino”) e Muhammad “ascendeu” na laytat al-miraj (a “jornada noturna”), prefigurando assim a finalidade humana.  

  3. “Antes de tudo” significa neste caso que, em última análise, esta shahadah, sendo, assim como a primeira, uma Palavra ou “Nome” Divino, efetiva o mesmo conhecimento que ela, em virtude da unicidade de essência da Palavra ou dos Nomes de Deus.  

  4. Em relação a Ibn Arabi um estudioso espanhol falou de “islã cristianizado”: isso é perder de vista o fato de que a doutrina do Shaykh al-akbar era essencialmente muçulmana e era, em particular, uma espécie de comentário do Muhammadun rasul Allah, no sentido das declarações vedânticas: “todas as coisas são atman” e “tu és isso”.  

Frithjof Schuon