Louis-Claude de Saint-Martin — QUADRO NATURAL DAS RELAÇÕES EXISTENTES ENTRE DEUS, O HOMEM E O UNIVERSO
A Mitologia: seu objeto verdadeiro
De fato, nas narrativas mitológicas o vulgo só vê um jogo de imaginação dos Escritores ou a corrupção de tradições históricas, ou talvez os efeitos da idolatria, do temor ou da tendência que dos Povos para com os feitos maravilhosos. Assim, excetuando-se algumas alegorias engenhosas, tudo na fábula lhe parece bizarro, ridículo ou extravagante.
Homens estimáveis, colocados na classe dos Sábios, empregaram a mais vasta erudição para a esse respeito estabelecer sistemas mais sensatos do que a opinião comum. Mas, como não se aprofundaram bastante na natureza das coisas, sua doutrina permanece, por mais imponente que possa ser, abaixo das tradições que tentaram interpretar.
Não podemos emitir outro julgamento sobre os que limitaram o sentido das tradições mitológicas exclusivamente a um objeto inferior e isolado e que se esforçaram por fazer ver nele, em todas as situações, o sistema particular que haviam abraçado, sem percebermos que as tradições, por não possuírem todas o mesmo caráter, não podiam tolerar a mesma explicação; sem percebermos que umas, ligadas à alta antiguidade, encerravam os emblemas das verdades mais profundas; que outras, muito mais modernas, só deviam a existência à superstição e à ignorância dos Povos que, não tendo compreendido as tradições primitivas, alteraram-nas, confundindo-as com as tradições posteriores e particulares de cada Nação; que a mistura dessas tradições, os preconceitos dos Historiadores e os frutos da imaginação dos Poetas lhes haviam aumentado a obscuridade. De modo que, longe de querer concentrar a Mitologia num objeto particular, deveríamos antes admitir que ela apresenta fatos que não têm analogia alguma.
E se se permite que os Observadores nela busquem relações com a classe das coisas que lhes são conhecidas, a razão nos proíbe que sejamos cegos para não vermos nada além e reduzirmos emblemas que podem ter um alvo mais vasto e mais elevado a um objeto inferior e com limitações. Ela se opõe, bem mais ainda, a que se deem a essas tradições e emblemas um sentido e alusões que jamais poderia convir-lhes.
São essas aplicações falsas e estreitas que tenho o propósito de destruir a fim de elevar o pensamento do homem a interpretações mais justas, mais reais e mais fecundas. Entretanto, para não mais nos desviarmos de nossa marcha, da qual essas observações são meros acessórios, limitar-nos-emos a examinar os dois principais sistemas mitológicos, o que bastará para fixar nossa opinião sobre todos os outros.
O primeiro desses sistemas apresenta, em todas as Fábulas da Antiguidade, símbolos dos trabalhos campestres, indícios do tempo e das estações próprias à Agricultura e todas as leis que a Natureza terrestre e celeste é forçada a seguir para o crescimento, a manutenção e a vida das produções da vegetação.
Tendo concebido esse sistema, os Observadores fizeram esforços admiráveis para justificá-lo, nele encontrando relações com todos os detalhes da Mitologia. Mas, para perceber-lhe a imperfeição, um pouco de atenção será o suficiente.
Em tempo algum e em Povo algum se viu fazerem figuras que fossem mais belas e mais nobres do que as coisas figuradas. Se pretendêssemos que o homem empregou o superior como emblema do inferior ao imaginar símbolos e hieróglifos mais elevados e mais espirituais do que o objeto que queria designar, não estaríamos lançando por terra todas as noções que temos da marcha do espírito do homem?
Pelo contrário, não é certo que o verdadeiro alvo do símbolo seja o de velar ao olhos do vulgo alguma verdade, cujo emprego errôneo ou profanação deveríamos temer se ela fosse revelada? De fazer com que aquele que não é digno dessa verdade tenha dificuldade em descobri-la ou em subir até ela através do símbolo, enquanto os ditosamente preparados perceberão com um relancear de olhos todas as relações que ele encerra?
Não é certo que os símbolos e os hieróglifos são quadros ou signos destinados a fazer com que as verdades e as Ciências úteis se tornem sensíveis à maioria das pessoas, tornando-se compreendidas por aqueles cujo espírito limitado não poderia percebê-las nem conservar-lhes a lembrança sem o socorro dos signos grosseiros?
Essas definições simples demonstram de modo satisfatório que os emblemas, as figuras e os símbolos não podem ser superiores e nem mesmo iguais a seus tipos, porque então a cópia se elevaria acima do modelo, ou poderia confundir-se com ele — o que a tornaria inútil.
Basta, pois, comparar a maior parte dos emblemas mitológicos aos tipos que os Intérpretes quiseram dar-lhes para decidirmos, de acordo com a inferioridade dos tipos, se sua aplicação pode apresentar alguma exatidão.
Examinemos o que parecer mais nobre e mais engenhoso, ou os detalhes grosseiros e mecânicos da Lavoura ou das Pinturas vivas nas quais se representam todas as paixões e onde são personificados todos os vícios e virtudes.
Examinemos, além disso, se podemos considerar as constelações celestes e suas influências sobre os corpos terrestres, com referência à vegetação, como o tipo da Mitologia. Como essa opinião apresenta a mesma inferioridade do tipo quanto à figura, os mesmo motivos a tornam inadmissível. Quanto aos signos astronômicos vulgares, sobre os quais gostaríamos de fixar exclusivamente o nosso pensamento, digamos que, por ignorância, o homem estabeleceu quase todos eles em divisões ideais, com nomes arbitrários de animais, personagens e outros objetos sensíveis. Imaginárias e convencionais, as relações que deles nos são apresentadas não oferecem a ideia de um verdadeiro tipo, não passando de figuras vagas, estranhas aos Verdadeiros signos astronômicos e às Virtudes que lhes servem de móveis.
Isso deve bastar para abrir os olhos àqueles que, por perceberem apenas um objeto isolado nas tradições das fábulas, creem que a Mitologia dos antigos deve a origem somente à Agricultura e à Astronomia. O erro provém de que, posteriormente, alguns símbolos dessas duas Ciências foram confundidos com as tradições simbólicas primitivas. Com isso, os homens se viram ainda mais afastados das verdades simples e importantes que formavam o objeto dessa tradições.
Assim, sem pretender negar os poucos símbolos fornecidos à Mitologia pela Agricultura e pela Astronomia, podemos prestar um serviço aos nossos semelhantes advertindo-os de que essas tradições, tais como as recebemos dos Antigos, encerram um infinidade de outros símbolos para os quais é totalmente impossível admitir o mesmo sentido e as mesmas relações, porque seu tipo não se encontra na terra, nem nos astros, ou em qualquer Ser corpóreo.
Vários Observadores já deram às tradições uma interpretação mais viva, mais nobre e mais análoga a nós mesmos do que as que acabamos de percorrer. Não temo enganar-ME ao adotar abertamente a doutrina desses judiciosos Intérpretes. Quanto mais sublime for ela, menos erro haverá em nos aproximarmos deles.
O homem, sua origem, seu fim, a lei que deve conduzi-lo a seu termo, as causas que dele o mantêm afastado e a Ciência do homem, indissoluvelmente ligada à do Primeiro dos Princípios — eis os objetos que os Autores das Tradições primitivas quiseram retratar, a única coisa que pode enobrecer e justificar seus símbolos, o único tipo digno dos mesmos, porque aqui o tipo é superior à alegoria, embora a alegoria convenha perfeitamente ao tipo.
Nenhum homem instruído sobre sua verdadeira natureza e que busque penetrar o sentido das Tradições mitológicas deixará de perceber nelas, com uma espécie de admiração, os símbolos dos fatos mais importantes para a espécie humana e mais análogas a si mesmo.
Quem não reconheceria em Alcioneu — o Gigante famoso que socorreu os Deuses contra Júpiter, atirado por Minerva do Globo da Lua, onde se postara, e que tinha a virtude de ressuscitar — o antigo Prevaricador, excluído da presença do Princípio supremo, reduzido ao horror da desordem e acorrentado num recinto tenebroso, onde as forças superiores não deixam de coagi-lo e de molestar-lhe a vontade que sempre renasce?
Seria vista com a mesma clareza a história do homem criminoso em Prometeu, e a dos diversos crimes de sua posteridade, em todos os infelizes cujos nomes e suplícios que nos são apresentados pela Mitologia?
É o caso de Epimeteu abrindo a caixa de Pandora. Observaremos aqui que Prometeu significa o que vê antes, ou primeiro vidente, e que Epimeteu significa o que vê depois, ou segundo vidente, expressão da qual tiraremos em seguida outras relações.
É o caso de Íxion, que projeta uma relação incestuosa com a mulher de Júpiter, seu pai, mas que, abraçando nada mais que uma nuvem, produziu os Centauros, monstros metade homens, metade cavalos, nos quais, evidentemente, se representa a nossa natureza mista. Seu suplício é uma imagem fiel do homem lançado nas extremidades da roda em torno da qual circula e onde apenas encontra inimigos furiosos e implacáveis.
É o caso de Sísifo, revelando os segredos do Rei, seu senhor, condenado a viver empurrando um Rochedo enorme montanha acima, o qual o sempre torna a descer — isto é, perseverar em empreendimentos audaciosos para ser continuamente molestado ao vê-los continuamente lançados por terra.
É o caso, por fim, das Danaides, que matam os maridos e que, sem a virtuosa conduta de Hipermnestra, teriam para sempre degradado o número centenário perfeito do qual a família é formada. Ficando também reduzidas a tirar água sem descanso em vasos sem fundo1, fazem-nos compreender o que podem os seres que afastaram de si seus Guias e seu sustentáculo, figurado pelo chefe ou o marido dessas jovens criminosas.
Em todos os símbolos os olhos adestrados talvez entrevejam relações mais diretas e mais sensíveis, tais como o quadro da marcha dos seres culpados que, condenados a um só ato, realizam-nos sempre da mesma maneira e que, por causa dessa monótona uniformidade, traem a si mesmos, pondo o homem bem intencionado ao abrigo de seus ataques: conforme experimentamos pelas diversas paixões que nos obsedam, apresentando-se sempre com a mesma cor que cada uma tinha ao começar a nos perseguir. Mas, como essas noções não estão ao alcance do vulgo, contentemo-nos com observar, no quadro de Tântalo, as penas às quais estamos sujeitos: ver no Cão de três cabeças (Cérbero), nos três rios dos Infernos, nas três Parcas e nos três Juízes os três gêneros diferentes de combates, padecimentos e suspensões que temos de sofrer em razão das três Ações superiores das quais estamos separados e os três graus de expiação que todo homem deve escalar antes de chegar ao termo de sua reabilitação. As Tradições mitológicas gregas e egípcias não se limitam a nos apresentar os efeitos da Justiça dos Céus sobre o Homem. Pintam-nos, igualmente, os traços de seu amor oferecendo-nos, embora debaixo de véus, os raios de sua própria luz.
É verdade que, como consequência de nossa infeliz situação, essa luz não pode exibir todo o seu esplendor porque, como também espalha claridade sobre os perigos e os males que cercam o homem, este só experimentaria horror e pavor se percebesse de uma vez todos os inimigos que o rodeiam e os obstáculos que deve combater e superar.
Também faz parte da ordem da Sabedoria que ele seja exposto aos poucos aos Adversários tremendos, só lhe permitindo abrir os olhos com precaução e gradativamente, velando por ele como por uma criança que fremisse de medo e terror se, em sua fraqueza, pudesse conhecer o rigor e a violência dos elementos ou dos agentes ativos que lhe disputam o insignificante envoltório.
E se vemos que tantos homem ainda são como crianças a respeito desses grandes objetos, é que há fatos como os da classe elementar, onde milhares de homens, recebendo as ações e contra-ações dos agentes da Natureza durante toda a vida material, estão, mesmo assim, dispostos a não lhe reconhecerem leis nem causas regulares, por não terem observado sua marcha. É que, pela fraqueza de sua inteligência, eles deixam passar diante de si esses fenômenos sem deles retirarem qualquer instrução.
Mas se é incontestável a doutrina acima estabelecida sobre nossas relações com o nosso Princípio, não podemos mais desconhecer os signos do amor vigilante da Sabedoria pelo homem no símbolo de Minerva, filha de Júpiter, cobrindo seus favoritos com uma Égide impenetrável; na esperança deixada a Epimeteu depois que ele abriu a caixa fatal; nos conselhos dados pelos Deuses (Têmis) à sua filha Pirra e a Deucalião, seu esposo, para repovoarem a Terra depois que a raça humana fora destruída.
Foi por uma consequência desse mesmo amor que a piedade do rei Átamas fê-lo obter dos Deuses o tosão de ouro, que a coragem e a virtude de Teseu fizeram-no merecer o fio de Ariadne, que Orfeu imobilizou a roda de Íxion, que Júpiter fez presente às Náiades da cornucópia em troca da que lhe fora arrancada ao pai e que os Deuses colocaram na Terra um caduceu para que nela reinasse a ordem e a paz, um tripé para sobre ele emitirem seus oráculos e homens escolhidos para os pronunciar. Todos esses símbolos demonstram claramente o interesse da Divindade pelo homem e a ideia indestrutível que dela tiveram aqueles que os traçaram.
Sabemos de antemão o que devemos pensar do famoso Hércules, eleito pelos Intérpretes de todos os gêneros como um modelo de seus sistemas. Seus numerosos trabalhos, realizados em benefício da espécie humana, declaram bem de que modelo é ele a figura simbólica. E, mesmo sem contar todos os trabalhos em detalhe, devemos sentir o que ele nos ensina ao matar o abutre pelo qual o infeliz Prometeu acreditava que deveria ser eternamente devorado; ao sufocar o gigante Anteu, que fizera voto de erguer a Netuno um templo de crânios humanos; ao encarregar-se do peso da terra para aliviar Atlas que, no sentido etimológico, significa um Ser que carrega, um Ser sobrecarregado. Ora, a quem convém melhor esse sentido senão ao homem oprimido pelo peso de sua região terrestre e cheia de trevas? Por fim, é preciso lembrar que, para recompensar Hércules por seus inúmeros trabalhos, depois de sua morte corporal os Deuses fizeram-no desposar Hebe, ou a Juventude Eterna.
As verdades físicas abrem passagem igualmente através dos símbolos mitológicos. Argos é um tipo do Princípio vivo da Natureza, que jamais afrouxa sua ação sobre ela, que a penetra e anima em todos os pontos, que lhe entretém a harmonia e vela em toda parte para impedir que a desordem dela se aproxime.
A Divindade, que presidia ao mesmo tempo aos Céus, à Terra e aos Infernos, anunciava o triplo e quádruplo elo que une todas as partes do Universo, laço do qual a Lua é para nós o signo real: recebe a ação quaternária do sol, reúne em si não apenas as virtudes de todos os outros astros, mas, habitando o céu como eles, exerce, ademais, ação direta sobre a terra e as águas, emblema sensível dos abismos.
É certamente em razão dessa grande virtude que os Neomênios, ou Luas Novas, foram tão celebrados pelos Antigos. Como a Lua era o carro e o órgão das ações superiores a ela, não era de se admirar que seu retorno fosse honrado com regozijo. E se os Antigos houvessem considerado esse retorno apenas com relação à luz elementar, não teriam instituído Festas para celebrá-lo.
Não obstante, esse uso era tão natural que, numa Língua primitiva, da qual não tardaremos a nos ocupar, os termos planeta e influência são sinônimos.
Por fim, o famoso Caduceu, que separa duas serpentes em luta, é uma imagem expressiva e natural do objeto da existência do Universo, o que se repete nas mínimas criações da Natureza, em que Mercúrio mantém o equilíbrio entre a água e o fogo para sustentar os corpos e para que as leis dos Seres, sem disfarce diante dos olhos dos homens, possam por eles ser lidas em todos os objetos que os rodeiam. O emblema do Caduceu, transmitido pela Mitologia, é, pois, um campo inesgotável de conhecimentos e instrução, porque as verdades mais físicas figuram ao homem as leis do Ser intelectual e o termo para o qual ele deve inclinar-se a fim de recuperar o equilíbrio.
Todas as alegorias que acabamos de ver bastam para convencer-nos de que, a começar pela primeira origem das coisas temporais, as Tradições mitológicas apresentam ao homem uma multidão de imagens fiéis de todos os fatos passados, presentes e futuros que lhe devem interessar; que ele pode ver neles a história do Universo material e imaterial, a sua própria, isto é, o quadro de seu esplendor original, o de sua degradação e o dos meios empregados para reabilitá-los em seus direitos.
Quanto aos que querem limitar as Tradições mitológicas aos fatos históricos, nada vendo nas antigas Divindades além de Heróis ou personagens célebres, cremos que podem ter razão em alguns pontos, mas é preciso que confessem também que a maior parte dessas interpretações particulares só foram feitas posteriormente e segundo tradições mitológicas já existentes. De sorte que não deixamos de reconhecer que a Mitologia primitiva foi hieroglífica e simbólica, ou seja: que encerrou as verdades mais importantes para o homem, e de tal modo necessárias que elas não deixariam de existir mesmo que as Fábulas, outra espécie qualquer de Tradição, não nos tivessem dado uma ideia delas.
Mas posso apresentar ao Leitor um fio a mais para conduzi-lo nesse labirinto: preveni-lo de que, como a mesma alegoria encerra verdades de várias ordens, é preciso seguir essas verdades segundo sua expressão natural; é preciso, de início, procurar na alegoria o sentido mais próximo ao da letra como sendo o mais inteligível e mais ao nosso alcance, e em seguida elevar-se ao sentido que o sucede de imediato. Por meio dessa marcha atenta e prudente, chegar-se-á ao conhecimento do sentido mais sublime que uma Tradição possa encerrar. Se essa ordem não for observada, se for omitido qualquer termo da progressão e se quisermos explicar-lhe demais os extremos, só encontraremos confusão, obscuridade, contradições, porque, ao negligenciarmos um sentido intermediário, ficaremos privados do único meio que podia tornar os objetos inteligíveis.
NOTAS
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NT: Na verdade, as Danaides despejam água num tonel sem fundo. ↩