René Guénon: O HOMEM E SEU DEVIR SEGUNDO O VEDANTA (Capítulo XXIV)
“O iogue, cujo intelecto é perfeito, contempla todas as coisas como se morassem dentro de si mesmo (em seu próprio “Si”, sem qualquer distinção entre exterior e interior), e assim, através do olho do Conhecimento (Jnâna-chakshus, uma expressão que poderia ser traduzida com bastante precisão por “intuição intelectual”), percebe (ou melhor, concebe, não racional ou discursivamente, mas por consciência direta e “assentimento” imediato) que todas as coisas são Âtmâ.
“Sabe que todas as coisas contingentes (formas e outras modalidades de manifestação) não são diferentes de Âtmâ (em seu princípio), e que fora de Âtmâ não há nada, “as coisas diferem meramente (de acordo com um ditado do Veda) em designação, acidente e nome, como os utensílios terrestres recebem vários nomes, embora sejam apenas diferentes formas de terra”; e assim percebe (ou concebe, no mesmo sentido acima) que ele mesmo é todas as coisas (pois não há nada que seja um ser outro que ele mesmo ou seu próprio “Si”).
“Quando os acidentes (formais e outros, incluindo a manifestação sutil e grosseira) são removidos (existindo apenas em um modo ilusório, de modo que realmente não são nada na visão do Princípio), o Muni (tomado aqui como sinônimo de Yogi) entra, com todos os seres (na medida em que eles não são mais distinguidos de si mesmo), na Essência que tudo permeia (que é Âtmâ).
“Ele é sem qualidades (distinto) e sem ação; imperecível (akshara, não sujeito à dissolução, que tem um domínio apenas sobre o múltiplo), sem volição (aplicada a um ato definido ou a circunstâncias definidas); cheio de Bem-aventurança, imutável, sem forma; eternamente livre e puro (incapaz de ser restringido, atingido ou afetado de qualquer forma por outro que não seja ele mesmo, uma vez que esse outro não existe ou, pelo menos, tem apenas uma existência ilusória, ao passo que ele mesmo é/está na realidade absoluta).
“Ele é como o Éter (Âkâsha), que está espalhado por toda parte (sem diferenciação), e que penetra simultaneamente no exterior e no interior das coisas; é incorruptível, imperecível; é o mesmo em todas as coisas (nenhuma modificação afeta Sua identidade), puro, impassível, inalterável (em Sua imutabilidade essencial).
“Ele é (nas palavras do próprio Veda) “o Brahma Supremo, que é eterno, puro, livre, sozinho (em Sua perfeição absoluta), incessantemente repleto de Bem-aventurança, sem dualidade, o Princípio (incondicionado) de toda a existência, conhecedor (sem que esse Conhecimento implique qualquer distinção entre sujeito e objeto, o que seria contrário à “não dualidade”) e sem fim”.
“Ele é Brahma, além de cuja posse não há nada a possuir; além de cujo gozo da Bem-aventurança não há bem-aventurança que possa ser desejada; e além de cuja obtenção do Conhecimento não há conhecimento que possa ser obtido.
“Ele é Brahma, que, tendo sido visto (pelo olho do Conhecimento), nenhum objeto é contemplado; com quem, sendo identificado, nenhuma modificação (como nascimento ou morte) é experimentada; que, sendo percebido (mas não como um objeto perceptível por qualquer faculdade), não há mais nada a ser percebido (já que todo conhecimento distintivo é doravante superado e como que aniquilado).
“Ele é Brahma, que está em toda parte, em tudo (uma vez que não há nada fora Dele e tudo está necessariamente contido em Sua Infinidade): no espaço intermediário, no que está acima e no que está abaixo (isto é, na totalidade dos três mundos); o verdadeiro, pleno de Bem-aventurança, sem dualidade, indivisível e eterno.
“Ele é Brahma, afirmado no Vêdânta como absolutamente distinto daquilo que Ele penetra (e que, por outro lado, não é distinto Dele, ou pelo menos é apenas distinto Dele em um modo ilusório), incessantemente cheio de Bem-aventurança e sem dualidade.
“Ele é Brahma, “por quem (de acordo com o Veda) são produzidos a vida (jîva), o sentido interno (manas), as faculdades de sensação e ação (jnânêndriyas e karmêndriyas) e os elementos (tanmâtras e bhûtas) que compõem o mundo manifestado (tanto na ordem sutil quanto na ordem grosseira)”.
“Ele é Brahma, em quem todas as coisas estão unidas (além de toda distinção, mesmo principal), de quem todos os atos dependem (e que é Ele mesmo sem ação); é por isso que Ele está espalhado por tudo (sem divisão, dispersão ou diferenciação de qualquer tipo)”.
“Ele é Brahma, que é sem magnitude ou dimensões (incondicionado), não estendido (sendo indivisível e sem partes), sem origem (sendo eterno), incorruptível, sem figura, sem qualidades (determinado), sem atribuição ou caráter de qualquer tipo.
“Ele é Brahma, por quem todas as coisas são iluminadas (participando de Sua essência de acordo com seus graus de realidade), cuja Luz faz brilhar o sol e todos os corpos luminosos, mas que não é manifestado por esta luz.
“Ele mesmo penetra em Sua própria essência eterna (que não é diferente do Brahma Supremo), e (simultaneamente) contempla o Mundo inteiro (manifestado e não manifestado) como (também) Brahma, assim como o fogo penetra intimamente em uma bola de ferro incandescente, e (ao mesmo tempo) também se mostra externamente (manifestando-se aos sentidos por seu calor e luminosidade).
“Brahma não se assemelha ao Mundo, e fora de Brahma não há nada (pois, se houvesse algo fora Dele, Ele não poderia ser infinito); tudo o que parece existir fora Dele só pode existir (dessa forma) em um modo ilusório, como a aparência da água (a miragem) no deserto (marû).
“De tudo o que é visto, de tudo o que é ouvido (e de tudo o que é percebido ou concebido por qualquer faculdade), nada existe (verdadeiramente) fora de Brahma; e, pelo Conhecimento (principial e supremo), Brahma é contemplado como o único verdadeiro, pleno de Bem-aventurança, sem dualidade.
“O olho do Conhecimento contempla o verdadeiro Brahma, pleno de Bem-aventurança, penetrando em tudo; mas o olho da ignorância não o descobre, não o percebe, como um cego não vê a luz sensível.
“O “Si” sendo iluminado pela meditação (quando o conhecimento teórico, portanto ainda indireto, faz com que pareça que recebeu Luz de uma fonte diferente de si mesmo, o que ainda é uma distinção ilusória), então queimando com o fogo do Conhecimento (percebendo sua identidade essencial com a Luz Suprema), é liberado de todos os acidentes (ou modificações contingentes), e brilha em seu próprio esplendor, como o ouro que é purificado no fogo.
“Quando o Sol do Conhecimento espiritual se ergue no céu do coração (isto é, no centro do ser, que é designado como Brahma-pura), dissipa a escuridão (da ignorância que encobre a única realidade absoluta), penetra tudo, envolve tudo e ilumina tudo.
“Aquele que fez a peregrinação de seu próprio “Si”, uma peregrinação na qual não há nada relativo a situação, lugar ou tempo (nem qualquer circunstância ou condição particular), que está em toda parte (e sempre, na imutabilidade do “eterno presente”), na qual nem o calor nem o frio são experimentados (nem qualquer outra impressão sensível ou mesmo mental), que proporciona bem-aventurança permanente e libertação definitiva de todos os problemas (ou de todas as modificações); ele não tem ação, conhece todas as coisas (em Brahma) e obtém a Bem-aventurança Eterna. ”