Sistemas dos setianos e dos peratas (ICEE)

Ioan Couliano — EXPERIÊNCIAS DO ÊXTASE (CoulianoPsychanodia)

Os sistemas dos setianos e dos peratas

O sistema do tratado Zostriano, como aquele da Paráfrase de Sem, onde os eones percorridos pelo visionário aparecem sob a forma de nuvens coloridas pertencem a uma forma de especulação gnóstica que o heresiólogo Hipólito de Roma atribuiu ao grupo dito dos “setianos”

O setianos de Hipólito postulam a existência de três princípios (v. Tríade):

  • a luz
  • as trevas
  • o espírito ou pneuma no meio

Estes princípios não se revelam através da percepção imediata mas através de uma meditação gradual que se assemelha à aprendizagem de uma arte. Conforme à concepção gnóstica de pneuma, definido habitualmente como “orvalho”, “aspersão” ou “aroma”, ou ainda como “umectação” de luz, os setianos concebem também o pneuma como um “perfume” que irradia por toda parte. Quanto às trevas, elas são formadas de água irracional que deseja ansiosamente o contato com o pneuma e a luz, para não ficar só, invisível, obscura, sem poder e sem eficacidade, débil. Por esta razão exerce todas as suas faculdades para reter nela mesma o esplendor da luz e o perfume do pneuma.

Os três princípios contém inumeráveis forças atômicas em colisão perpétua. Deste movimento e contato emergem modelos ou moldes, formas que agem sobre as substâncias como selos. Estas formas representam as ideias dos diferentes organismos vivos, de todos os seres atualizados na criação. É do mesmo impacto primordial das forças atômicas dos três princípios que surgiu a moldagem do céu e da terra, que é uma espécie de matriz, similar em tudo e para tudo à matriz maternal. Com efeito, é meditando sobre a forma da vulva feminina que se pode perceber, ou melhor, visualizar a imagem da matriz cósmica. Todas as coisas saíram de uma vagina deste gênero, na qual estava impressa a forma de cada ser individual. Uma vez engendradas as criaturas destas matrizes, acima delas se difunde o perfume do pneuma, veículo da luz superior.

O movimento das águas tenebrosas foi produzido por um primeiro princípio, um vento terrível que levantou uma onda enorme no elemento líquido inferior, feminino. Esta onda-matriz foi fecundada pelo pneuma portador de luz; em seguida engendrou o homem primordial chamado Nous (intelecto), que é um deus perfeito antropomórfico, mas ao mesmo tempo escravo das trevas. A luz quer salvá-lo, liberá-lo de seu corpo tenebroso. Para tal põe-se em movimento o mecanismo da salvação, com a meta de recuperar o Nous, um mecanismo que se superpõe aos eventos do Livro do Gênesis, interpretados agora de modo especulativo. Um raio de pneuma impregnado de luz se deixa deliberadamente aprisionar nas trevas: é o espírito flutuando sobre as águas, agitado por um vento em forma de serpente. Este drama se resolve na criação de um novo Homem, o Logos que é o Cristo, o qual penetra nos mistérios repugnantes da matriz maternal para salvar o Nous preso nas trevas.

Exegetas do gnosticismo não entenderam a relação direta dos conteúdos especulativos do gênero acima com a prática gnóstica. Desta maneira, o caráter de experiência vivida que a gnose tinha para seus adeptos foi reduzido a uma pura generalidade. Veremos em seguida que os gnósticos tinham a sua disposição manuais contendo a descrição dos lugares ou topoi onde residem os poderes celestes, seus nomes e senhas. A ascensão da alma do gnóstico se desenvolve sobre estes mapas escatológicos. Mas a gnose intelectualista, opondo-se à gnose ritualista, não consistia em uma simples memorização abstrata de esquemas deste gênero. As técnicas gnósticas de meditação implicavam em visualizações e cenários fantásticos que só se tem uma pálida ideia atualmente. Quando os setianos de Hipólito recomendavam meditar sobre a composição das pupilas oculares ou da vagina, isto referia-se a um exercício que o adepto deveria praticar. Tais imagens são concretamente evocadas na Paráfrase de Sem, onde o elemento predominante é formado de inumeráveis matrizes cheias de olhos, de ventos-matrizes e de nuvens coloridas representando eões celestes.

Pouco se pode reconstituir da experiência vivida da gnose das técnicas de meditação utilizadas; certamente não era por simples memorização dos esquemas fantásticos que apresentam-se em suas obras que se realizava a meditação requerida para a experiência gnóstica. Claro que a lembrança da topografia de cada lugar do Além, os nomes e fórmulas de cada arconte (príncipe celeste), as senhas e a encantação melódica não era coisa fácil, mesmo quando o número de “duanas” — topoi ou taxeis — não ultrapassasse 60. Mas a maneira precisa como os gnósticos aprendiam isso é desconhecida.

Um dos exercícios praticados pelos gnósticos ditos Peratas, se fazia fixando os olhos sobre uma porção do céu. Pela modificação da perspectiva focal ou a mediação sobre a forma das nuvens (ou os dois ao mesmo tempo), podia-se obter a imagem de uma serpente.

Hipólito é sem dúvida o heresiólogo mais preocupado de transmitir fielmente as doutrinas de seus adversários. Talvez porque tenha sido o único a ter acordado uma certa importância a uma prática tão estranha.

A experiência da gnose não pode ser compreendida sem exercer ao máximo nossas faculdades poéticas, como bem enfatiza Gilles Quispel. Embora técnicas de meditação, sonhos e êxtases sejam outra coisa que poesia, a imaginação poética é o instrumento apropriado para seu entendimento.

As etapas até a obtenção da experiência íntima da gnose, equivalem a uma ascensão extática, quando o adepto tinha a visão dos eones, sob a forma de nuvens coloridas ou topoi geométricos com figuras bizarras e nomes estranhos.

Ioan Couliano