Suzuki (MCB) – Deus como ser e não-ser

D. T. SUZUKI, D. T.. Mística: cristã e budista. Tr. David Jardim. Belo Horizonte: Itatiaia

David Jardim

Ser é Deus. .. Deus e ser são a mesma coisa — ou, do contrário, Deus seria feito de outro e assim não seria Deus ele próprio. . . Tudo que existe tem o fato de ser através de ser e procedendo de ser. Portanto, se o ser é algo diferente de Deus, as coisas derivam seu ser de algo diferente de Deus. Além disso, nada há anterior ao ser, porque aquele que confere o ser cria e é criador. Criar é tirar o ser do nada.1

Eckhart é, com muita frequência, metafísico, e nos leva a especular como seus ouvintes recebiam seus sermões — ouvintes que, segundo se supõe, deviam ser bem pouco eruditos, ignorando o latim e toda a teologia escrita em latim. Esse problema do ser e da criação do mundo por Deus, tirando-o do nada, deve ter intrigado muito aquela gente. Os próprios eruditos talvez não tivessem compreendido Eckhart, pois sabemos que eles não estavam tão enriquecidos pela experiência quanto ele. O simples pensamento ou raciocínio lógico jamais conseguiriam esclarecer problemas de profunda significação religiosa. As experiências de Eckhart são profundas, fundamental e fartamente enraizadas em Deus como Ser, que é, ao mesmo tempo, ser e não ser: ele vê nas coisas “mais insignificantes” entre as criaturas de Deus todas as glórias de sua “existencialidade” (isticheit). A iluminação budista não é nada mais que a experiência da “inexistencialidade” ou “identidade” (tathata) que tem em si mesma todos os valores possíveis (guna) que nós humanos podemos conceber.

A característica de Deus é ser. O filósofo diz que uma criatura pode dar vida a outra. No ser, no mero ser, reside tudo que existe em tudo. Ser é seu primeiro nome. Defeito significa falta de ser. Toda a nossa vida deve ser o ser. Enquanto nossa vida consiste em ser, estará em Deus. Enquanto nossa vida for débil mas recebida como ser, este ultrapassa tudo de que a vida pode jamais se vangloriar. Não tenho dúvidas disso, que se a alma tivesse a mais remota noção do que o ser significa, jamais ela se afastaria dele por um instante. A coisa mais trivial percebida por Deus, uma flor olhada por Deus, por exemplo, seria uma coisa mais perfeita que o universo. A coisa mais desprezível presente em Deus como ser é melhor que o conhecimento angélico.2

Esta passagem talvez pareça muito abstrata para a maioria dos leitores. O sermão foi feito, segundo se diz, no dia consagrado aos “santos mártires que foram mortos com a espada”. Eckhart começa expondo suas ideias acerca da morte e do sofrimento, que têm um termo, como tudo mais que pertence a este mundo. Continua, depois, dizendo que “nos cumpre emular a morte em ausência de paixão (niht betrüeben), diante do bem e do mal e do sofrimento de qualquer natureza, e cita São Gregório: “Ninguém recebe tanto de Deus quanto o homem que está inteiramente morto”, porque “a morte lhes (aos mártires) dá a existência — perdem a vida, mas encontram a existência”. A alusão de Eckhart à flor contemplada por Deus nos faz lembrar a entrevista de Nansen com Rikko, no qual o mestre do Zen também alude a uma flor no pátio do mosteiro.

Quando encontro tais afirmações é que aumenta a minha convicção de que as experiências cristãs não são, afinal de contas, diferentes das budistas. A terminologia é tudo que nos separa e nos impele a um prejudicial desperdício de energia. Devemos, contudo, pesar a questão cuidadosamente e verificar se existe, de fato realmente, algo que nos afaste uns dos outros e se existe alguma base para nossa edificação espiritual e para o progresso de uma cultura universal.

original

Being is God. . . . God and being are the same—or God has being from another and thus himself is not God. . . . Everything that is has the fact of its being through being and from being. Therefore, if being is something different from God, a thing has its being from something other than God. Besides, there is nothing prior to being, because that which confers being creates and is a creator. To create is to give being out of nothing.3

Eckhart is quite frequently metaphysical and makes one wonder how his audience took to his sermons—an audience which is supposed to have been very unscholarly, being ignorant of Latin and all the theologies written in it. This problem [7] of being and God’s creating the world out of nothing must have puzzled them very much indeed. Even the scholars might have found Eckhart beyond their understanding, especially when we know that they were not richly equipped with the experiences which Eckhart had. Mere thinking or logical reasoning will never succced in clearing up problems of deep religious significance. Eckhart’s experiences are deeply, basically, abundantly rooted in God as Being which is at once being and not-being: he sees in the “meanest” thing among God’s creatures all the glories of his is-ness (isticheit). The Buddhist enlightenment is nothing more than this experience of is-ness or suchness (tathatā), which in itself has all the possible values (guna) we humans can conceive.

God’s characteristic is being. The philosopher says one creature is able to give another life. For in being, mere being, lies all that is at all. Being is the first name. Defect means lack of being. Our whole life ought to be being. So far as our life is being, so far it is in God. So far as our life is feeble but taking it as being, it excels anything life can ever boast. I have no doubt of this, that if the soul had the remotest notion of what being means she would never waver from it for an instant. The most trivial thing perceived in God, a flower for example as espied in God, would be a thing more perfect than the universe. The vilest thing present in God as being is better than angelic knowledge.4

This passage may sound too abstract to most readers. The sermon is said to have been given on the commemoration day of the “blessed martyrs who were slain with the swords.” Eckhart begins with his ideas about death and suffering which come to an end like everything else that belongs to this world. [8] He then proceeds to tell us that “it behooves us to emulate the dead in dispassion (niht belrüeben) towards good and ill and pain of every kind,” and he quotes St. Gregory: “No one gets so much of God as the man who is thoroughly dead,” because “death gives them [martyrs] being,—they lost their life and found their being.” Eckhart’s allusion to the flower as espied in God reminds us of Nansen’s interview with Rikko in which the Zen master also brings out a flower in the monastery courtyard.

It is when I encounter such statements as these that I grow firmly convinced that the Christian experiences are not after all different from those of the Buddhist. Terminology is all that divides us and stirs us up to a wasteful dissipation of energy. We must however weigh the matter carefully and see whether there is really anything that alienates us from one another and whether there is any basis for our spiritual edification and for the advancement of a world culture.


  1. Blakney, pág. 278. 

  2. Evans, pág. 206. 

  3. Ibid., p. 278. 

  4. Evans, p. 206. 

Daisetsu Teitaro Suzuki