Vemos aí, de nossa parte, o sinal de uma “junção” entre duas formas tradicionais, uma antiga e outra nova — a tradição céltica (v. celtas) e a tradição cristã. Trata-se de uma junção mediante a qual o que devia ser conservado da primeira foi incorporado à segunda, modificando-se sem dúvida, até certo ponto, quanto à forma exterior, por adaptação e assimilação, mas de modo algum transpondo-se de um plano a outro, pois há equivalência entre todas as tradições regulares. Existe nisso, portanto, algo mais que uma simples questão de “fontes”, no sentido que entendem os eruditos. Seria talvez difícil precisar com certeza o lugar e a data em que tal junção ocorreu, mas isso teria apenas um interesse secundário e quase que unicamente histórico. Além do mais, é fácil conceber que essas coisas são do tipo que não deixam traços em “documentos” escritos. Talvez a “Igreja celta” ou “culdeana” mereça a esse respeito mais atenção. Não é de modo algum improvável a existência por trás dela de alguma coisa pertencente a outra ordem, não mais religiosa, mas iniciática, pois tudo o que se refere aos vínculos existentes entre as diferentes tradições, como é o caso aqui, depende necessariamente do âmbito iniciático ou esotérico. O exoterismo, seja religioso ou outro, jamais vai além dos limites da forma tradicional à qual pertence com exclusividade; o que ultrapassar esses limites não pode pertencer a uma “Igreja” enquanto tal, e esta pode somente servir-lhe de “suporte” exterior. Aí está uma questão sobre a qual ainda teremos ocasião de voltar. [Guénon]
O fato de que o sentido superior da lenda do Graal transparece menos em Chrestien de Troyes, por exemplo, do que em Robert de Borron, não prova, necessariamente, que o primeiro tenha sido menos consciente do que o segundo. Mais ilícito seria ainda concluir que esse sentido está ausente de seus escritos, o que consistiria num erro comparável ao de atribuir aos antigos alquimistas preocupações de ordem unicamente material, pela única razão de que não julgaram oportuno escrever com todas as letras que sua ciência era, na realidade, de natureza espiritual (v. símbolos alquímicos). [Guénon]
Não temos dúvida de que as origens da lenda do Graal devem ser atribuídas à transmissão de elementos tradicionais, de ordem iniciática, do druidismo para o cristianismo. Essa transmissão, tendo ocorrido de forma regular, quaisquer que tenham sido as suas modalidades, fez com que tais elementos se tornassem parte integrante do esoterismo cristão. [Guénon]
Que os escritos relativos à lenda do Graal tenham procedido, direta ou indiretamente, de uma organização iniciática, não implica em absoluto que se constitua em ritual de iniciação, como supuseram alguns extravagantes. É curioso notar que semelhante hipótese jamais foi lançada, ao que sabemos, com referência a obras que, no entanto, descrevem de modo muito mais evidente um processo iniciático, como é o caso da Divina Comédia ou do Romance da Rosa. É evidente que os escritos que apresentam caráter esotérico não são, por esse motivo, rituais. [Guénon]
No que diz respeito à lenda do Santo Graal, uma estranha complicação que, até aqui, não levamos em conta: por uma dessas assimilações verbais — que, no simbolismo, desempenha muitas vezes um papel destacável, e que, além disso, pode ter razões mais profundas do que à primeira vista se poderia imaginar — o Graal é, ao mesmo tempo, um vaso (grasale) e um livro (gradale ougraduale). Em algumas versões, os dois sentidos encontram-se mesmo estreitamente ligados, pois o livro torna-se, então, uma inscrição traçada por Cristo ou por um anjo sobre o próprio cálice. Não pretendemos, no momento, extrair daí qualquer conclusão, ainda que existam paralelos fáceis de serem feitos entre o “Livro da Vida” e certos elementos do simbolismo apocalíptico.
Podemos acrescentar ainda que a lenda associa ao Graal outros objetos, em especial uma lança que, na adaptação cristã, é a lança do centurião Longinos. Mas, o que existe de muito curioso é a preexistência, nas tradições antigas, dessa lança, ou de algum de seus equivalentes, como símbolo de certa forma complementar ao cálice. Entre os gregos, por outro lado, admitia-se que a lança de Aquiles curava os ferimentos que provocava. A lenda medieval atribui precisamente a mesma virtude à lança da Paixão. E isso nos lembra uma outra semelhança do mesmo gênero: no mito de Adonis (cujo nome, aliás, significa “o Senhor”), quando o herói é mortalmente ferido pela presa de um javali (a presa substitui a lança), o seu sangue, ao derramar-se, dá nascimento a uma flor. A propósito, o Sr. Charbonneau assinalou na Regnabit: “uma espada de cavaleiro, do século XII, onde se vê o sangue das chagas do Crucificado cair em gotinhas que se transformam em rosas, e um vitral do século XIII, em que o sangue divino, correndo em filete, desabrocha sob a forma de rosas”.