Devemos lembrar que as mesmas acusações – orgias sexuais, canibalismo, incesto – foram feitas pelos pagãos contra os cristãos. E os escritores cristãos, desde Aristides e Justino Mártir até Tertuliano e Minucius Felix, repetidas vezes tentaram refutar os chavões que se tornaram tão populares após o julgamento de Orleães, ou seja, a extinção da luz, orgias, incesto e infanticídio ritual, seguidos de comunhão canibalesca, usando a carne e o sangue das crianças. No século III, os autores cristãos começaram a acusar os pagãos de ritos perversos e canibalescos. Contudo, sua campanha real foi dirigida contra os hereges cristãos. Já no ano 150, Justino Mártir acusava os hereges de orgias sexuais, incesto e antropofagia “com as luzes apagadas” (aposbennuntes tous luchnous). A mesma fórmula foi usada por Clemente de Alexandria contra os Carpocrácios, Montanistas e Gnósticos. Agostinho afirmava que lucerna extincta e orgias sexuais eram praticadas pelos Maniqueístas. Acusações análogas foram repetidas entre os séculos VII e IX contra os Messalianos, Paulicianos e Bogomilos.
Nenhum pesquisador aceitará tais acusações, indiscriminadamente levantadas contra as bruxas medievais, movimentos reformistas ou “heréticos”, assim como contra os primeiros cristãos, grupos gnósticos e seitas. Por outro lado, parece difícil admitir que reuniões e orgias sexuais ritualísticas após a extinção ritual das luzes, podem ser explicadas satisfatoriamente como pura invenção, consciente ou inconscientemente usada contra um grupo minoritário desprezado. É verdade que expressões como in loco subterrâneo ou lucerna extinta tornaram-se lugares comuns poderosos e populares. Contudo, se um chavão não é prova de ação que ele incrimina, também não chega a ser prova de sua inexistência. Tais chavões pertencem a universos imaginários, e, no momento, começamos a reconhecer a importância dos mistérios a sur-realité expressa por qualquer universo imaginário. Assim, a fórmula “extinção das luzes” é encontrada na descrição de algumas práticas orgiásticas na Ásia Central. E entre os círculos Xáticos e Tântricos do Himalaia, especialmente no Garhwal, a orgia ritual era chamada coli – marg, porque cada homem recebia, como parceira no rito, a mulher cujo peitilho ele havia obtido por sorte (coli = pano do seio). Também os rasamandali, literalmente “círculos de divertimento”, dos Vallabhacaryas frequentemente degeneram em orgias. A autenticidade de alguns destes depoimentos tem sido contestada. Contudo, pelo que sabemos das seitas russas e também da seita dos inocentistas da Bessarábia, essas orgias não eram totalmente improváveis.
Além disso, orgias rituais – em alguns casos precedidas pela extinção das luzes – são comprovadas entre povos tão diferentes quanto os curdos, os tibetanos, os esquimós, os malgaxes, os ngadju dyaks e os australianos. Os motivos desses rituais são de natureza vária, mas, geralmente, eles são realizados a fim de se evitar uma crise cósmica ou social – seca, epidemia, fenômenos meteorológicos estranhos (por exemplo, a aurora australis) – ou com a finalidade de dar apoio mágico e religioso a algum acontecimento auspicioso (um casamento, o nascimento de uma criança,etc.), através da liberação ou intensificação dos poderes da sexualidade. Por ocasião de um acontecimento potencialmente perigoso ou feliz, a prática sexual indiscriminada e excessiva faz com que a coletividade volte à época fabulosa das origens. Essa finalidade fica nitidamente evidente no costume de orgias periódicas, por ocasião do final do ano ou com intervalos sagrados específicos. Com efeito, esse é, sem dúvida, o tipo de orgia ritual mais antigo que revela a função original da prática sexual coletiva. Esses rituais fazem com que se volte ao momento primordial da criação ou ao estado de felicidade completa dos primórdios da humanidade, quando não existiam nem tabus sexuais nem convenções morais ou sociais. Talvez os ngadju dyaks e algumas tribos australianas forneçam os exemplos ilustrativos mais impressionantes desta crença.
Para os ngadju dyaks, o fim do ano significa o fim de uma era e, também, o fun de um mundo. As cerimônias mostram claramente que se dá o retorno à época pré-cósmica, ao tempo da sacralidade total. De fato, durante esse tempo sagrado por excelência, toda a população da aldeia vive novamente na idade primordial (ou seja, pré-cosmogônica). Regras e proibições são suspensas, uma vez que o mundo não mais existe. Enquanto esperam uma recriação do mundo, a vida da comunidade se passa junto da divindade primordial, mais exatamente em total identificação com ela. A orgia se processa de acordo com os mandamentos divinos e os participantes recuperam para si a divindade total. Como observa Scháier, “não se trata de uma ausência de ordem (embora assim nos pareça), mas de uma outra ordem”.
No caso dos dyaks, pode-se interpretar a orgia ritual como um desejo de volta à perfeita totalidade primordial existente antes da Criação. Há, contudo, outras formas de manifestação dessa nostalgia pelas origens. As tribos arunta, da Austrália Central comemoram os atos criadores de seus antepassados míticos em suas perambulações pela terra. Para os arunta, aquela época maravilhosa equivale à era paradisíaca. Nessa época, não só os animais se deixavam facilmente capturar e havia abundância de água e frutas, mas também os antepassados estavam livres de uma série de inibições e frustrações, obstáculos inevitáveis na vida dos seres humanos em comunidades organizadas. Os arunta ainda acreditam nesse paraíso primordial. Pode-se interpretar os bravos períodos de orgias rituais, quando todas as interdições são suspensas, como voltas efêmeras à liberdade e à perfeita felicidade gozadas pelos antepassados.
Tal nostalgia religiosa pelos tempos beatíficos das origens míticas parece acompanhar sempre a história da humanidade. Os adamitas, membros de uma seita boêmia dos séculos XIV e XV, procuravam recuperar o estado de inocência em que viveu Adão – antepassado mítico comum a eles e a nós. Por isso, eles andavam nus e praticavam o amor livre, homens e mulheres vivendo juntos em promiscuidade sexual, perfeita e desinibida. No início do século XIV, Lazarus, um monge do Monte Atos, ex-bogomilo, fundou sua própria seita, proclamando o nudismo como o meio de se recuperar o estágio anterior à Queda. Uma outra seita, fundada pelo pregador itinerante Teodósio, não somente recomendava a nudez ritual, mas incentivava seus adeptos a entregarem-se a excessos orgiásticos, a fim de receberem a graça do arrependimento. Uma motivação semelhante justificava, nos séculos XIX e XX, o comportamento dos inocentistas russos: eles viviam praticamente nus, em cavernas subterrâneas, e adotavam exclusivamente a relação sexual indiscriminada, na esperança de ser redimidos pela enormidade de seus pecados.
Hesita-se em atribuir esse tipo de comportamento aos cristãos ou membros de seitas dentro do Cristianismo. A demonização judeu-cristã da sexualidade fez com que qualquer tipo de orgia fosse considerado prática satânica e, consequentemente, um sacrilégio, merecendo a punição mais severa. Contudo, como é bem sabido, a sacralidade da vida sexual não foi extirpada nem do Judaísmo nem do Cristianismo. A razão disso está não somente no fato de serem a nudez ritual e a relação sexual cerimonial poderosas forças mágico-religiosas, mas também por exprimirem nesse contexto judeu-cristão a nostalgia por uma existência humana de perfeita felicidade, correspondente ao estado paradisíaco antes da Queda. Dentro da perspectiva religiosa, a grande desgraça em que caíram os nossos primeiros pais implica, entre outras calamidades, na interdição da nudez ritual e na perda da inocência sexual espontânea. Por isso, tentativas de recuperação dos poderes e das graças perdidas eram, direta ou indiretamente, consciente ou inconscientemente, acompanhadas de uma modificação radical do comportamento sexual.
É difícil, senão impossível, distinguir os elementos reais dos imaginários nos testemunhos prestados pelas bruxas sobre as suas “orgias” secretas. Um grande número de depoimentos foi, obviamente, obtido em tribunais eclesiásticos, católicos, luteranos ou calvinistas. Essa insistência sobre os mesmos velhos lugares-comuns demonstra que os teólogos cristãos estavam bastante cientes dos poderes mágico-religiosos da sexualidade. Tais poderes podiam transformar os cristãos em hereges sacrílegos e, finalmente, em seres perigosos e demoníacos. Tratava-se apenas de uma rotina conveniente denunciá-los como adoradores do Demônio. O fato decisivo estava em que, imaginárias ou não, as orgias das bruxas, assim como as dos hereges, traziam perigo às instituições sociais e teológicas, uma vez que liberavam nostalgias, esperanças e desejos, cujo fim último não correspondia ao ideal cristão de existência. Levando em consideração que, de modo geral, as populações rurais são apenas moderadamente interessadas em sexo, parece evidente que tais excessos sexuais cerimoniais buscavam outros objetivos além da simples gratificação dos sentidos.
Não era o simples desejo carnal que levava as mulheres do campo a se tornarem bruxas: era a esperança secreta de que, quebrando tabus sexuais e participando de orgias “demoníacas”, elas conseguiriam, de algum modo, superar sua própria condição. Em última análise, eram as forças mágico-religiosas das práticas sexuais proibidas que as atraíam para a bruxaria, mesmo que tais aventuras sacrílegas fossem realizadas num universo imaginário. Com efeito, a maior parte das bruxas refere-se à ausência de prazer em suas relações com o Demônio. A julgar por seus depoimentos, tais experiências parecem-nos mais provas iniciatórias difíceis do que uma partie de plaisir. Esse traço doloroso das orgias das bruxas era bastante conhecido, e não somente entre aqueles que acabaram por se tornar suspeitos de bruxaria. E óbvio que os promotores dos tribunais podiam forçar as acusadas a admitirem ter praticado a relação sexual com o Demônio. Contudo, há casos de testemunhos espontâneos prestados por jovens, descrevendo amplamente e com detalhes minuciosos, seu rapto “iniciatório” pelo Demônio – até que exames médicos provassem serem elas virgens.
Concluindo: é possível enquadrarmos as práticas orgiásticas reais ou imaginárias das bruxas europeias num certo padrão religioso. Em primeiro lugar, as orgias sexuais expressam um protesto radical contra as situações sociais e religiosas da época – um protesto causado e alimentado pela esperança de se recuperai uma perfeição beatífica perdida, isto é, aquela das “origens” fabulosas, um ideal que persegue a imaginação humana, principalmente em épocas de crises. Em segundo lugar, a possibilidade de os chamados elementos satânicos das orgias das bruxas serem imposições feitas pelos tribunais; em última análise, os lugares-comuns satanistas tornaram-se a principal arma utilizada nas denúncias feitas durante a caça às bruxas. Contudo, é possível que tais práticas, descritas como satânicas, fossem realmente realizadas; em tais casos, exprimiriam uma revolta contra instituições cristãs fracassadas em sua tarefa “redentora” do homem, e especialmente uma revolta contra a decadência da Igreja e a corrupção da hierarquia eclesiástica. Além do mais, deve-se levar em conta a atração irresistível que o mal exerce em certos tipos de personalidade. Em terceiro lugar, quaisquer que tenham sido as causas, um fato importante permanece: as práticas orgiásticas revelam uma nostalgia religiosa, um desejo imperioso de se voltar a uma fase primitiva de cultura – o tempo paradisíaco das “origens” fabulosas.
Algo semelhante vem acontecendo em nossos dias, principalmente na cultura jovem. Primeiramente, há uma insatisfação total para com as instituições existentes – religiosas, éticas, sociais e políticas. Tal ruptura com o passado é existencialmente ambivalente: por um lado, expressa-se através da agressividade e rebelião contra todos os tipos de regras e dogmas e o chamado “establishment”, todos inconscientemente associados à perseguição e à tirania: uma espécie inquisição morfema. Por outro lado, a rejeição das estruturas sociais e dos valores morais modernos, que implica numa rejeição da civilização e, em última análise, da história, tem um significado religioso dificilmente reconhecido como tal. Com efeito, nota-se entre alguns grupos da cultura jovem a redescoberta da “religião cósmica” e da dimensão sacramental da existência humana. Elementos reveladores dessa tendência são, por exemplo, a comunhão com a natureza, a nudez ritual, a desinibida espontaneidade sexual, a vontade de viver exclusivamente o presente e outros. Além disso, o interesse pelo oculto, tão característico da cultura jovem, também indica o desejo de reanimar velhas crenças e concepções religiosas, perseguidas ou não-totalmente aceitas pelas igrejas cristãs (astrologia, magia, gnose, alquimia, práticas orgiásticas), e o desejo de descobrir e desenvolver métodos não cristãos de salvação (Ioga, Tantra, Zen-budismo, etc.). (Eliade)