Taciano

Os fatos históricos levam por vezes o capricho a simular a ordem. Depois de Justino, Taciano, isto é, o protótipo e o ancestral desses pensadores que o cristianismo, fechado em si mesmo, está mais pronto a excluir do que curioso de assimilar. A educação de Taciano parece ter sido a de um retor grego. Aliás, ele conservou a vida inteira o gosto literário e o estilo muitas vezes obscuro que contraíra em sua juventude. Depois de ter viajado muito e ter-se iniciado em diversas disciplinas, notadamente a filosofia, converteu-se ao cristianismo por motivos análogos aos de Justino. Taciano foi, então, a Roma, lá conheceu Justino e tornou-se seu discípulo. A influência desse mestre, que ele declarou “ad-mirabilíssimo”, exerceu-se profundamente sobre seu pensamento, mas os elementos que passaram de Justino a Taciano mudaram muito de aspecto, integrando-se à obra do discípulo. Sua obra principal, o Discurso aos gregos, é datada pelos historiadores de entre 166 e 171, mas por motivos deveras abstratos. Quanto mais se sublinham seus elementos heréticos, mais se aproxima a data daquela em que Taciano saiu da Igreja; quanto mais se atenua esse aspecto de sua obra, mais se aproxima sua composição da data em que Taciano converteu-se ao cristianismo. Como quer que seja, o fato é que Taciano foi cada vez mais em direção a uma espécie de gnosticismo e aderiu em 172 à gnose de Valentim. Ainda mais tarde, ele devia seja fundar, seja restaurar a seita dita dos encratitas, professando um rigorismo moral absoluto, proscrevendo o casamento e prescrevendo a abstinência de carne e de vinho, sob pena de pecado. Taciano levou tão longe a aplicação de seus princípios que chegou a substituir o vinho pela água no sacramento da eucaristia. Do último período da sua vida data uma concordância dos quatro Evangelhos, o Diatessaron, cujo sucesso, em particular na Síria, foi considerável.

O Discurso aos gregos é a declaração dos direitos dos bárbaros, isto é, dos cristãos e do cristianismo, contra os helenos e sua cultura. Taciano usou com frequência contra eles de um argumento que já encontramos em Justino, mas que os polemistas da escola judaico-alexandrina (Josefo, Contra Apião, I; Fílon, Alegorias, I, 33) haviam empregado antes deles: os gregos tomaram da Bíblia várias de suas ideias filosóficas. Nada nos permite pensar, hoje, que a alegação seja justificada, mas, tomada como fato, ela prova que os primeiros pensadores cristãos tiveram consciência clara de que certa área dos problemas pertencia conjuntamente ã jurisdição dos filósofos e à dos cristãos. Se Taciano não inventou o argumento, utilizou-o de uma forma tão geral que nele podemos ver o traço característico de sua apologética. Aliás, ele generalizou seu emprego, inspirando-se num sentimento anti-helênico violento. O que ele sustentava é que os gregos nunca inventaram nada, em particular a filosofia. Os capítulos 31, 36 e 110 do Discurso têm por fim provar que “nossa filosofia”, como Taciano chama a religião cristã, é mais antiga do que a civilização dos gregos e que eles emprestaram desta várias doutrinas, de resto sem compreendê-las direito. Os sofistas gregos roubaram suas ideias e dissimularam seus roubos. Como o que eles não tomaram emprestado das Escrituras era absurdo, não se vê de que superioridade os filósofos podiam se gabar. Aristóteles, por exemplo, negava a providência, ou, pelo menos, limitava-a ao domínio do necessário, excluindo tudo o que sucede no mundo sublunar; além disso, ele ensinava uma moral aristocrática e reservava a felicidade aos que têm riqueza, nobreza, força corporal e beleza. Os estoicos pregavam a doutrina do eterno retorno dos acontecimentos. Anitos e Meletos deverão, pois, necessariamente, voltar para acusar de novo Sócrates e, como sempre há mais homens maus do que justos, sempre retornarão poucos justos para muitos maus. Vale dizer que Deus é responsável pelo mal, ou antes, já que os estoicos identificam Deus com a necessidade absoluta dos seres, dir-se-á que o próprio Deus é a maldade dos maus. Aliás, é de todo inútil criticar em detalhe os sistemas dos filósofos; eles próprios se encarregaram de fazê-lo, pois passaram seu tempo refutando uns aos outros. Taciano foi o primeiro a desenvolver em toda a sua amplitude o argumento, retomado incessantemente depois dele, “das contradições dos filósofos”. Esse tema constituirá, desde o século II, toda a matéria da obra tradicionalmente atribuída a Hérmias, Irrisio philosophorum (Irrisão dos filósofos).

As críticas dirigidas por Taciano à religião pagã não são particularmente originais. Elas consistem sobretudo em pôr em evidência a imoralidade da mitologia grega e o absurdo dos atos que ela atribui aos deuses, o que os filósofos gregos não haviam deixado de fazer antes dele. Sua crítica da astrologia equivale a mostrar que ela é obra dos demônios e que é, de resto, inconciliável com a ideia cristã de responsabilidade. Suas objeções contra a magia são do mesmo gênero. Justino dissera antes dele, em suas duas Apologias, que os demônios utilizam a magia para subjugar os homens. Desenvolvendo essa ideia, Taciano explica que, em geral, as doenças provêm de causas naturais, mas que os demônios se fazem passar por capazes de curá-las, daí as receitas mágicas. De fato, nosso apologista não tem mais confiança na medicina do que na magia, e parece ter confundido ambas. Seu verdadeiro pensamento é que um cristão digno desse nome considera a confiança em Deus um remédio suficiente para os males de que padece. Após a crítica do politeísmo e da magia, Taciano aprofundou particularmente a da fatalidade. É bastante curioso que suas objeções contra uma tese que podia vincular-se ao estoicismo tenham uma sonoridade tão perceptivelmente estoica. O cristão não poderia submeter-se à fatalidade, afirma Taciano, pois ele é senhor de si e de seus desejos.

A teologia de Taciano não difere sensivelmente da de Justino. As expressões que ele usa são mais nítidas, porém, por vezes brutais, e não sabemos se devemos ler Justino à luz de Taciano, ou se o discípulo forçou o pensamento do mestre em certos pontos importantes. O Deus de Taciano é único, invisível aos olhos humanos e puro espírito. Além disso, é “princípio” de tudo o que existe; isto é, sendo ele mesmo imaterial, causou a matéria. Deus não tem causa, mas todo o resto tem uma, e essa causa é Deus. A maneira como Deus é causa é digna de nota. Ele não causa a matéria como imanente a ela, mas a domina. Portanto, se há um espírito imanente às coisas, uma “alma do mundo”, só pode ser um princípio subordinado a Deus e que não é Deus. Essa flecha dirigida contra o estoicismo caracteriza a posição pessoal de Taciano. Já que tudo deve seu ser a Deus, podemos conhecer o Criador a partir da criatura. Como diz Taciano, que se lembra aqui de são Paulo (Rm 1, 20): “Conhecemos Deus por sua criação e concebemos, por suas obras, seu poder invisível.”

Antes da criação do mundo, Deus estava só, mas todo o poder das coisas visíveis e invisíveis já estava nele. Tudo o que estava nele aí se encontrava “por meio de seu Lo-gos”, que lhe era interior. Produziu-se então o acontecimento que já notamos em Justino, mas descrito, desta vez, com traços tão nítidos que não mais podemos hesitar sobre a sua natureza: “Por um ato livre e voluntário de Deus, cuja essência é simples, dele sai o Verbo, e o Verbo, que não se foi no vazio, é a primeira obra do Pai.” Taciano, que também aqui se lembra de são Paulo (Cl 1, 15), quer dizer que o Verbo divino não se perdeu no vazio como as palavras (verba) que pronunciamos, mas, uma vez proferido, permaneceu e subsistiu como ser real. Cabe então perguntar como essa geração produziu-se. O Verbo “provém de uma distribuição, não de uma divisão. O que é dividido é tirado daquilo de que é dividido, mas o que é distribuído supõe uma dispensa voluntária e não produz nenhuma falta naquilo de que é tirado”. Assim é a produção do Verbo por Deus, como uma tocha acesa por outra tocha, ou a palavra ouvida pelos ouvintes de um mestre: “Eu mesmo, por exemplo, vos falo, e vós ME ouvis, e eu, que ME dirijo a vós, não sou privado do meu verbo porque ele se transmite de mim a vós, mas, emitindo meu verbo, proponho-ME organizar a matéria confusa que está em vós.” Portanto, Deus proferiu mesmo seu Verbo, sem se separar dele, com vistas à criação.

Com efeito, foi o Verbo que produziu a matéria. Como diz Taciano, ele a “obrou” a título de “demiurgo”. O Verbo cristão coincide aqui com o deus do Timeu, que, por sua vez, se metamorfoseia em Deus criador. Para dizer a verdade, o Verbo de Taciano nem encontra a matéria já feita, como o demiurgo de Platão, nem a cria do nada, como o Deus da Bíblia. Parece muito mais “projetá-la” para fora de si por uma espécie de radiação, mas não poderíamos precisar melhor sem fazer Taciano dizer o que não disse. Em compensação, sabemos com certeza que, tendo representado a geração divina do Verbo como geração humana do pensamento e da palavra, ele concebeu naturalmente a criação como uma espécie de ensinamento: “Emitindo minha palavra, proponho-ME organizar a matéria confusa que existe em vós e, como o Verbo, que foi gerado no princípio, gerou por sua vez como sua obra, organizando a matéria, a criação que vemos, assim também eu, à imitação do Verbo, havendo regenerado e adquirido a inteligência da verdade, trabalho para pôr ordem na confusão da matéria cuja origem partilho. Porque a matéria não é sem princípio, como Deus, e não é, não sendo sem princípio, o mesmo poder que Deus; mas ela foi criada, ela é obra de outro e só pôde ser produzida pelo criador do universo.” Imediatamente depois de ter descrito assim a criação, no capítulo V de seu Discurso, Taciano extrai daí um argumento em favor da ressurreição dos corpos. Para quem admite a criação, o nascimento de um homem é exatamente o que será sua ressurreição; uma tese equivale, pois, à outra aos olhos da razão.

As primeiras criaturas são os anjos. Sendo criados, não são Deus. Não possuem, portanto, o Bem por essência, mas realizam-no por sua vontade. Em consequência, merecem ou desmerecem e podem ser justamente recompensados ou punidos. A defecção dos anjos foi, pois, castigada, porque era justo que fosse. Como sua defecção se produziu? Taciano fala, em termos abstratos, de ordens prescritas pelo Verbo e de uma revolta do primeiro anjo contra a lei de Deus. Outros anjos dele fizeram, então, um deus, mas o Verbo “excluiu de seu trato” o iniciador dessa defecção, bem como seus partidários. Essa retirada do Verbo fez desses anjos demônios, e os homens, que os seguiram, tornaram-se mortais. De certas expressões que Taciano emprega nos capítulos VII e XII do Discurso, devemos concluir que ele fez, aqui, um esforço para tornar inteligível aos pagãos a doutrina cristã da queda. Tudo isso, portanto, não é mais que uma narração de estilo apologético para uso de seus leitores, e talvez seja imprudente deter-nos muito no detalhe. Em compensação, Taciano é bastante firme sobre as consequências da defecção dos anjos no que concerne ao homem, porque ele tem horror ao estoicismo e a sua doutrina da necessidade, sustentando, por conseguinte, que os anjos decaídos ensinaram aos homens a noção de fatalidade. Uma vez aceita, essa crença funcionou como se o Destino fosse uma força real, e os homens tornaram-se verdadeiramente escravos dessa invenção diabólica.

Da antropologia como da teologia de Taciano, podemos dizer que ela nos expõe à tentação de precisar em vários pontos a doutrina de Justino, com risco de atribuir ao mestre desenvolvimentos que talvez não sejam mais que obra do discípulo. Seja como for, sabemos que o próprio Taciano decompõe o que chamamos de alma em dois elementos. O primeiro, ele chama de psyche, espécie de espírito como o que, em latim, será chamado de animus, que penetra a matéria de tudo o que existe, astros, anjos, homens, animais, plantas e água. Embora seja una em si mesma, essa psyche assume uma natureza diferente segundo as diversas espécies de seres que anima. Aliás, ela é material. Taciano declara falar aqui segundo a Revelação, isto é, provavelmente de acordo com os textos do Antigo Testamento que identificam a alma dos animais com o sangue. A segunda parte da alma é o espírito, ou pneuma. É a parte superior e a alma propriamente dita. Ela é imaterial, e é aí que reside no homem a imagem e semelhança de Deus. Considerada em sua própria natureza, a alma é mortal; se ela não morre, é graças à vontade de Deus. Saber que sorte Deus reserva efetivamente à alma é, infelizmente, tão difícil em Taciano como em seu mestre, Justino. Temos a impressão de que nos falta uma chave para ler com clareza o que eles dizem a esse respeito. Eis pelo menos o que podemos ler no capítulo XIII do Discurso aos gregos: “A alma humana, em si, não é imortal, ó gregos, ela é mortal; mas essa mesma alma é capaz, também, de não morrer. Ela morre e se dissolve com o corpo, se não conhece a verdade, mas deve ressuscitar mais tarde no fim do mundo, para receber com seu corpo, em castigo, a morte na imortalidade; e, de outro lado, ela não morre, ainda que dissolvida por um tempo, quando adquiriu o conhecimento de Deus.” Pode-se glosar à vontade tal texto, mas como estar seguro de fazê-lo sem trair o pensamento de seu autor? O único ponto certo parece ser mesmo que a doutrina platônica da imortalidade da alma, hoje integrada à doutrina cristã, não se impôs como necessária ao pensamento dos primeiros cristãos. O que a eles mais importava não era estabelecer a imortalidade propriamente dita da alma, mas, caso ela fosse mortal, garantir sua ressurreição e, se fosse imortal, sustentar que ela não o é por si mesma, mas pela livre vontade de Deus.

É nessa concepção da imortalidade da alma que Taciano parece ter encontrado o princípio da sua moral. Em si mesma, a alma não é mais que trevas, mas ela recebeu do Verbo ao mesmo tempo luz e vida. Por sua revolta contra Deus, a vida retirou-se dela e é-lhe necessário, doravante, esforçar-se para alcançar seu princípio. Felizmente para os homens, o próprio Verbo tenta descer de novo até eles por intermédio de homens inspirados, aqueles em que domina o pneuma, por oposição àqueles em que domina a psyche. Produz-se uma conversão (metanoia) em toda alma que torna a acolher em si o Espírito divino expulso pelo pecado. Essa conversão, ou arrependimento, incita a alma a separar-se da matéria e a empenhar-se num ascetismo que também a libertará tanto quanto possível desta.

Vemos despontar aqui as noções gnósticas que acabaram por levar Taciano ao encratismo, de que se tornou o chefe. Da obra em que expôs sua última doutrina, Sobre a perfeição segundo o Salvador, infelizmente conhecemos apenas o título, mas as tendências gerais de sua obra são bastante nítidas para que possamos ver em Taciano o tipo de um temperamento cristão oposto ao de Justino. Todo o Discurso aos gregos é obra de um “bárbaro” em luta contra o naturalismo helênico, sem nenhuma distinção entre o que continha de são ou malsão, logo sem nenhum esforço para assimilar o que quer que fosse desse naturalismo. Não podemos nos impedir de encontrar um sentido histórico profundo para o fato, de aparência paradoxal, de que o inimigo irreconciliável do naturalismo grego tenha acabado herético e que aquele que relacionava toda beleza, mesmo que fosse grega, à iluminação do Verbo, seja ainda hoje honrado pela Igreja com o título de são Justino. (Etienne Gilson)

DIcionário da Idade Média