Transfiguração (Abellio)

(Abellio, Serant1955)

Manter-se na “gênese” da consciência ocidental exigiria reconstituir aqui o caminho que, de Descartes a Husserl, conduz hoje a essa interiorização do mundo que Descartes queria separado e se prolonga na exploração concertada da transfiguração, que será a ocupação decisiva da nova era do conhecimento. Evidentemente, não cairemos no ridículo de afirmar que nossa época descobre o problema da transfiguração. Os místicos, quando alcançam o estado de exultação ou adoração, e da mesma forma os artistas, quando a inspiração os visita, comungam com um mundo transfigurado. Assim vivida, a transfiguração sempre existiu. A torpor de Adão no momento em que Eva foi concebida dele era transfiguradora, só era torpor para uma visão ingênua e puramente externa do que, no mesmo instante, se realizava em Adão: a irrupção da beleza e da transcendência na visão humana do mundo. Mais tarde, o aparecimento da videira e a embriaguez de Noé marcaram o instante simbólico em que esse poder de transfiguração, outrora recebido por Adão de forma passiva (seu “torpor” foi desejado por Deus, não por ele), foi subitamente colocado, pela primeira vez, à disposição do homem, que pôde usá-lo e abusar dele como quis. E essa mutação que se realizou no mesmo momento no destino da espécie foi a razão suficiente do Dilúvio, seu propósito oculto. O Dilúvio só ocorreu para permitir a embriaguez de Noé, seu sono inspirado, sua noite do além da noite; só interveio para tornar experimentável pelo homem a separação entre o mundo da banalidade, onde o casal de Sem e Jafé, em sua dualidade, andando para trás, continuou a se comprazer, e o da transcendência, onde Cam, pela primeira vez e como primeiro dos homens, penetrou, unificado por um instante e despertado1. Em um trabalho recente, A. Huxley estudou o poder transfigurador das drogas. O vinho é apenas a primeira delas. Conheceremos drogas cada vez mais potentes. Toda a história dos homens consiste na ascensão dos poderes do homem absorvendo a droga do mundo e só sucumbindo a ela para se superar. Se a água foi transformada em vinho, depois o vinho em sangue, e se o sangue é o suporte da alma, é porque a alma do homem se enriquece com a alma do mundo transfigurado pelo homem, a ponto de negar que o mundo tenha uma alma distinta. Nessas fronteiras, a doença é apenas o movimento da saúde. A transfiguração se mantém nessa linha brilhante onde a vida e a morte compartilham seu limite comum, e onde a plenitude do tempo é também seu cumprimento. Saiba ou não, toda vida parte para a exploração desses confins. O ar que respiramos, a comida que comemos, nossas amizades, nossos amores, todas essas comunhões imperfeitas com o mundo que chamamos de nossos atos ou pensamentos, toda essa vida que somos obrigados a considerar sonambúlica assim que lançamos sobre ela um olhar retrospectivo, a virtualidade da transfiguração habita cada instante, e todo momento que passa, sem que saibamos, é diluviano.

Mas se o mundo da transfiguração sempre existiu e nunca deixou de ser nosso mundo, em que a época atual marca, pelo menos para o Ocidente, um progresso decisivo, não apenas no estudo dos problemas da transfiguração, mas na prática desse estado secundário, em sua submissão à vontade clara, no manejo consciente de uma nova espontaneidade? Por que as antigas justificativas da oração, por exemplo, parecem insuficientes, e em que espírito se quer hoje proceder a uma elucidação do estado místico, estado do qual o esoterismo tradicional já não se satisfaz, e sob o qual a consciência moderna quer encontrar um fundamento positivo? Mas em que e em que sentido pode-se falar desse fato de uma verdadeira revolução nos fundamentos da própria doutrina esotérica e na exploração do oculto, em que o dogmatismo ou formalismo do antigo esoterismo aparecem por sua vez como insuportáveis e devem ser reduzidos? Ao marcar a irrupção das exigências da filosofia no domínio outrora reservado da chamada ciência oculta, essa revolução não chega a arruinar a antiga pretensão do esoterismo de constituir um domínio privilegiado, de fronteiras vigiadas e até proibidas, seja porque, criando uma técnica do oculto, acaba por banalizá-lo até negar sua existência própria, seja porque, e talvez ao mesmo tempo, demonstra que o chamado esoterismo tradicional é apenas a persistência de um modo primitivo de conceituação e deve, por isso, ser rejeitado em favor da metafísica da nova era? Reina hoje nessas matérias uma extrema confusão, e o campo próprio do esoterismo nunca foi seriamente definido senão por uma oposição linear ao da ciência. Mas toda oposição linear é de pura alienação. E talvez pressintamos que a resposta às questões anteriores reside nessa simples constatação: O esoterismo ainda está na história, o “Eu” transcendental não está mais. O “Eu” transcendental só pode ser a plenitude da consciência, da qual o esoterismo, como doutrina, é apenas uma vestimenta particular. Ora, a consciência é originária, é ela que funda o tempo, não é o tempo que a funda. A consciência não pode resultar de uma gênese. As noções de inconsciente, subconsciente ou supraconsciente, usadas indiscriminadamente pelos modernos, não são, a esse respeito, senão monstros filosóficos, representações supersticiosas. Não é o esoterismo que permite esclarecer a consciência, é a consciência que permite reconstituir, iluminar de dentro o corpo dogmático do esoterismo. A pretensão do esoterismo de servir hoje de refúgio ao qualitativo, em oposição à invasão da vida moderna pelos valores de quantidade, essa pretensão é um mal-entendido. No entanto, essa reconstituição fenomenológica do esoterismo ainda é esoterismo? O sobrevoo do tempo opera no tempo? Estamos aqui em uma situação-limite, e aliás o paroxismo atual da história só ocorre para que o homem, em si mesmo, abole o divertimento da história e acesse outra realidade. Husserl não hesitou em ver em sua fenomenologia, isto é, no estudo especulativo das vias de abordagem e da estrutura do “Eu” transcendental, o meio de sair de uma metafísica degenerada e fundar uma nova metafísica, que não seja apenas uma doutrina, mas um poder. Nas poucas páginas desta introdução, será obviamente impossível mostrar como, em nossa opinião, essa nova metafísica ilumina e suscita um esoterismo igualmente regenerado e resulta na desqualificação do antigo esoterismo, na unificação do esoterismo e da filosofia em uma superação comum, e como esse movimento de integração e esclarecimento converge com o atual deslocamento de todas as disciplinas paracientíficas. Seja o simbolismo psicanalítico, a parapsicologia ou a astrologia estrutural, as aquisições “objetivas” do período contemporâneo se apresentam como um caos relativo que só se organiza, na melhor das hipóteses, em estruturas parciais. Ora, assim como Descartes superou e integrou em seu tempo as formas do pensamento escolástico e seu conteúdo, da mesma forma, por exemplo, e na mesma época, o astrólogo Morin de Villefranche superou e integrou Ptolomeu. Se Descartes hoje pode ser superado e integrado, Morin também deve poder sê-lo. Em nossa visão dialética, esferoidal e não mais linear das sucessões, pouco importa que essas superações sejam também, em certo sentido, regressões. Hoje, por sua vez, Husserl supera e integra Descartes, mas essa superação, que aliás assume conscientemente a forma de um retorno ao começo, mas a um começo transfigurado, toca desta vez um absoluto intransponível, que está em relação com a crise histórica última do próprio Ocidente. A astrologia de Morin de Villefranche, por razões análogas às que marcam a atual falência de Descartes, aguarda uma reintegração homóloga, uma transfiguração de Ptolomeu, inimaginável, evidentemente, pelo próprio Ptolomeu, mas reconstituindo para nós o que foi a inspiração inefável desse astrólogo que sua inspiração superou. Está claro para nós, doravante, que a fenomenologia transcendental husserliana ocupa, tanto por seu método quanto por suas aquisições, esse ponto último de convergência para o qual todas essas pesquisas se orientam a fim de encontrar um fundamento radical. Em plena crise das éticas e estéticas ocidentais, a consciência desse fato, do qual decorre para o Ocidente a implementação de um método e uma metodologia únicos e universais, apresenta obviamente uma importância capital: mas exige, é um fato, uma conversão intelectual difícil, ela mesma radical, que pode melhor dar o sentido do que a Tradição chama iniciação, palavra hoje caída no domínio dos mitos e que também convém regenerar. Evidentemente, não poderemos apresentar aqui, em apoio dessa afirmação, uma demonstração completa. Algumas indicações de abordagem pelo menos colocarão o problema.

 


  1. Cf. Carlo Suarès: O Mito judaico-cristão (Le Cercle du Livre, Paris, 1950), pp. 82 e seg. 

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