Via devocional e via gnóstica (Abellio)

(Abellio, Serant1955)

Vamos precisar nosso pensamento com uma analogia. Em suas manifestações, a febre, por exemplo, é repetitiva. Aparentemente, ela também não muda a natureza do corpo que afeta. Ela cessa e o corpo volta a ser o que era, aparentemente. Na realidade, os elementos de irreversibilidade que a febre contém, como toda manifestação, permanecem invisíveis para nós. Eles existem, no entanto, e seria preciso ter uma concepção singularmente estreita da vida para ver na febre apenas um distúrbio passageiro, individual, localizado e fortuito. Preferimos vê-la como a manifestação sistemática de um poder coletivo, de um egrégoro ainda desconhecido, submetendo o organismo humano como um todo a uma tensão positiva visando uma futura mutação da humanidade, um aumento de seus poderes. Assim como se aquece um metal para temperá-lo e dar-lhe novas virtudes. Seria igualmente pueril pensar que o místico, após a adoração, volta a ser o que era, e que uma partícula infinitesimal do homem futuro não germinou nele, que uma nova encarnação não se preparou ao mesmo tempo no segredo de seus genes e na totalidade de seu sangue. No entanto, o homem febril que recupera a saúde ignora essa virtualidade de mutação. Sua própria mudança lhe escapa. A saúde é para ele apenas um retorno ao passado. Da mesma forma, após sua efusão, a nostalgia do estado de graça que habita o místico só o habita de fato como nostalgia, ou seja, ele é possuído por ela, mas não a possui. No entanto, não podemos negar aqui os efeitos biológicos surpreendentes da oração, assim como os fenômenos um tanto simploriamente chamados de habituação, que pertencem justamente à integração invisível das “doenças”. Não podemos ignorar as curas de Lourdes ou a incorruptibilidade do corpo de certos santos. Esses fatos constituem verdadeiras transfigurações, e mesmo transfigurações últimas, pois se aplicam à “matéria” visível a todos e assim se tornam “objetivas”.

Mas justamente esses são casos limites e, portanto, casos singulares. Toda a Vocação Ocidental consiste em descer dessas alturas particulares, onde os sinais que o invisível nos faz são indecifráveis e, portanto, insignificantes, e, ao contrário, ascender ao universal, não pelas vias do egrégoro, mas por nossas próprias vias. Essa vocação é irredutível. A via devocional não nos basta mais. Queremos nos ligar a nós mesmos por uma filiação visível. Qualquer outra filiação, especialmente aquela que nos leva a presumir a intervenção de um Deus, deve primeiro ser reduzida por nós, com vistas a uma tentativa de integração clara e distinta, sempre repetível. Certa menina de quinze anos tem o dom da pintura e parece anunciar um pintor genial, mas perde esse dom um ano depois. Era apenas um dom. Queremos poder substituir esse dado por um fundamento, um fundamento estabelecido por nós. Não queremos receber, mas fazer. Rimbaud, aos dezoito anos, lança seus relâmpagos, depois se cala, abandonado a si mesmo. É porque protestamos contra esse eventual abandono que não aceitamos, sem reservas, o dom que o precedeu. O calor da efusão mística parece se concentrar ou se dissipar ao acaso, segundo as fantasias ou gracejos do egrégoro que a comanda e para o qual ela certamente escapa à vaidade da repetição. Nesse gênio da pintura ou da poesia, nesse ardor místico, em que medida é essa menina, ou Rimbaud, ou esse místico que se expressam? Certamente, esse egrégoro que nos sinaliza por seu canal só nos propõe assim os enigmas de nossa futura força. Porém, pretender sistematizar a experiência transfiguradora nesse terreno é nos perder como indivíduos, e mesmo que essa renúncia tenha seus prestígios, mesmo que se possa pensar na reversibilidade dos méritos e das situações e dizer que ninguém se perde senão para permitir que outros se encontrem, ainda assim não nos encontramos tentando simplesmente copiar aqueles que se perdem. Copiar Van Gogh não é recuperar o olhar de Van Gogh. O próprio Van Gogh conhecia seu olhar? Sua loucura só nos informa negativamente, como a loucura dos místicos. Cada um deve encontrar sozinho seu tipo de loucura. Conheci um menino de cinco anos que tinha o hábito de furtar em lojas. Ele pertencia a uma família abastada, que se afligia com esses furtos. Obviamente, repreendiam o garoto, mas ele continuava furtando: “Não sou eu que roubo”, dizia ele, “é minha mão”. E depois de furtar, batia em sua própria mão. Van Gogh era a infeliz mão de algum egrégoro cuja visão permanecia sem dúvida infantil, mas patética, e que sofria cruelmente com isso, embora essa visão, como toda visão infantil, anunciasse o retorno da visão.

Existe, então, outra via cuja constituição, ou pelo menos reconstituição, esteja inteiramente ao alcance do homem?

A oração, a poesia, a música são poderes, mas poderes dados antes que a técnica do homem se aposse deles e os decomponha para extrair receitas ou motivos de reflexão. Mas essa reflexão degrada e destrói o antigo poder. No entusiasmo despreocupado de uma inspiração que o levava, Stendhal escreveu A Cartuxa de Parma em cinquenta e dois dias, depois, voltando a si para se compreender e reconstituir essa aventura fascinante e passar justamente para o outro lado da fascinação, ele se concentra e se decompõe para melhor se recompor, e escreve “com ponderação” Lucien Leuwen, deixando em suspenso as cenas de amor: nunca as escreverá. Nesse vazio sob o qual a obra se dissolve, pode-se dizer onde começa e onde termina a degradação intermediária que destrói o dom dado ao homem para melhor fundamentar o dom que o homem se faz? E em que medida a reflexão sobre a poesia, a música e a oração deixa de ser ela mesma poesia, oração ou música para preparar uma nova expressão transcendente à antiga? A expressão é inerente ao homem. O homem canta e reza antes de ter consciência de sua oração e de seu canto. Mas quando Chateaubriand observa que, em todas as latitudes, o canto do homem é triste mesmo quando expressa felicidade, ele se abre a uma consciência do canto mais elevada do que a do selvagem que canta, uma consciência que só sacrifica o poder atual do canto primitivo para nutrir um canto transfigurado do qual recebe, de si mesma, a consagração. Para o homem consciente, o sagrado sempre se apagará no consagrado. O gesto de Napoleão tomando a coroa das mãos do papa e colocando-a ele mesmo sobre sua cabeça marca a maioridade da era ocidental descobrindo sua vocação, que é experimentar o inefável por meios que o inefável não circunscreve. Esses meios só podem ser os da técnica, ou seja, das ciências positivas. Como ferramentas, são universalmente disponíveis, e em relação a elas o homem está protegido contra qualquer desapossamento. E no próprio âmbito das ciências e técnicas, a ferramenta cuja universalidade é, por assim dizer, ainda mais universal, aquela da qual nenhum homem é privado, mesmo no deserto mais deserto, é a razão lógica, o jogo demonstrativo do discurso por dedução. Quando Platão expulsou os poetas da República, ele apenas obedecia à própria evolução do gênio grego, que acabara de inventar o raciocínio geométrico e exigia que todas as criações espontâneas do homem, como a embriaguez dionisíaca do canto ou o delírio orgiástico da poesia, passassem por esse filtro e nele provassem seus efeitos. Podemos, ao que parece, confiar em Platão, que era poeta o suficiente para saber que a poesia expulsa pela porta voltaria pela janela, mas era justamente esse retorno que ele esperava, ao final de uma provação necessária, para que a poesia não se contentasse com sua facilidade e não se perdesse em jogos formais e conhecesse, ao contrário, no intervalo, seu deserto de quarenta dias. Submetida ao controle rigoroso do olhar, a poesia, aparentemente, se extingue. Toda luz, em certo sentido, é dissolvente. Mas essa operação tem duas faces, como se diz na alquimia: Solve et coagula. A luz sempre acaba se tornando calor e vida.

Toda via para a transfiguração que admitir a decomposição e o encadeamento de um discurso como prelúdio ou pródromo da contemplação será aqui chamada via gnóstica, em oposição à chamada via devocional. Naturalmente, não se pode aceitar essa distinção como absoluta. Não existe uma via gnóstica pura, nem tampouco uma via devocional pura. Se admitirmos, por exemplo, que o auxílio externo dos ritos, da liturgia, das fórmulas de oração, da música, da salmodia ou do canto constitui o próprio da via devocional, também será preciso considerar que nada nesse sentido impede ou contradiz, no mesmo instante, uma meditação tão profunda quanto se queira sobre o significado desses ritos, dessa liturgia ou das palavras desses salmos, e essa meditação, em si gnóstica, poderá até se tornar um dos principais suportes da devoção, um dos alimentos mais ardentes da adoração. Inversamente, esses mesmos cantos e orações, esses mesmos gestos rituais, ao concentrarem a atenção, poderão se tornar os auxiliares e excitantes mais preciosos da meditação, transformando-a em uma espécie de devaneio ao mesmo tempo coerente e exaltado, onde os poderes próprios da reflexão confinarão com os da inspiração. Em outras palavras, um intercâmbio intensificador perpétuo sempre se estabelecerá entre devoção e gnose, sem prejuízo do fato de que a lógica formal, que é o suporte do discurso coerente, é, no fim das contas, ela mesma apenas uma ferramenta externa, como os ritos ou a salmodia. Foi preciso que o ensino teológico perdesse o sentido da dialética para que se opusesse linearmente devoção e gnose e que a metafísica se tornasse quase um pecado. São Boaventura, que era um místico especulativo, pôde suceder à frente dos franciscanos a São Francisco, que era um contemplativo, sem que essa sucessão parecesse contrária à vocação mística da Ordem: ela apenas marcava o jogo das complementaridades. Que o fascínio exercido pelos ritos tenha um efeito diferente do da atenção exigida pela lógica, no sentido de que parece despersonalizar o “devoto”, enquanto o “gnóstico” se encontrará, por sua meditação, ainda mais ancorado em si mesmo, que se possa até sustentar que neste último caso não há fascínio, mas concentração, e que o fascínio é vazio de si e esvazia o devoto, enquanto a concentração é plena de si e preenche o gnóstico, esse ponto pertence a uma dialética do pleno e do vazio que, no limite, se torna pura escolástica. Alguns preferem dizer que o místico se perde em Deus, outros que nele se encontra. Basta-nos considerar a devoção e a gnose como duas possibilidades polarmente opostas e associadas, duas situações-limite abstratas inseparáveis, cujas situações concretas constituem mistos.

Recusamos, portanto, separar o homem de devoção do homem de consciência, exceto pela “natureza” de sua consciência. A consciência devocional aparece como possuída, a consciência gnóstica como possuidora. A primeira é ingênua, a segunda transcendental. Mas ambas se correspondem como o estado de sono corresponde ao estado de vigília; e assim como não se conhece ser normal capaz de viver sem dormir, da mesma forma a consciência ingênua aparece como o fundo natural no qual a consciência transcendental é obrigada a mergulhar e repousar para recuperar seu vigor. Se a via devocional parece no Ocidente se opor radicalmente à via gnóstica, essa falsa alternativa se deve à decadência dos fariseus, a quem Jesus já gritava que haviam tirado do templo a chave do verdadeiro sacerdócio. Na medida em que a consciência de cada homem oscila perpetuamente entre seus dois níveis, todo homem contém, ao contrário, a cada instante, a dupla possibilidade da devoção e da gnose, cada uma integrando os ganhos da outra em um movimento circular cujo paroxismo, em certos momentos privilegiados, culmina na unidade da adoração.

 

 

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