Frances Yates. Excertos de «Giordano Bruno» [FYGB]
Em 1614, foi publicado na Inglaterra o volume de Casaubon que encerrava a crítica à Hermética, com uma dedicatória a Jaime I. Três anos mais tarde, o inglês Robert Fludd dedicava ao mesmo monarca o primeiro volume, publicado na Alemanha, do seu Utriusque cosmi . . . historia.
Outro dado interessante ligado ao desmascaramento de Hermes por Casaubon foi publicado enquanto Walter Raleigh estava preso na Torre, escrevendo a sua História do Mundo, apimentada com citações de Ficino (Pimandro), e com todo um trecho sobre Hermes Trismegisto (parte I, livro II, capítulo , parágrafo VI), que, segundo Raleigh, era talvez mais antigo do que Moisés, e a quem profundamente venerava, adotando uma linha segundo a qual a idolatria do Asclépio seria uma corrupção introduzida nos escritos do santo. Temos, portanto, quase ao mesmo tempo, no reinado de Jaime I: (1) Casaubon desmascarou Hermes Trismegisto pela crítica; (2) um sobrevivente da era elisabetana, Raleigh, ainda sentia seu poder encantatório; (3) e o jovem Fludd se preparava para levar à nova era a causa do hermetismo. Um maior contraste do que existe entre essas duas obras, publicadas com poucos anos de intervalo uma da outra, e ambas dedicadas ao rei da Inglaterra, mal pode ser imaginado. Casaubon, usando os instrumentos humanistas no exame da erudição grega, demolira o primitivo modo de datar a Hermética, e demonstrara que os paralelos entre tais escritos com o Velho e Novo Testamentos e com as obras de Platão e dos platônicos deviam ser explicados como empréstimos, tomados dos escritores mais antigos pelos mais novos. Fludd, ignorando inteiramente o novo modo de datar, tanto nessa quanto nas demais obras volumosas que escreveu, vivia num mundo em que jamais Casaubon poderia ter nascido, o mundo do hermetismo religioso, repleto do mais profundo respeito a Hermes Trismegisto como um antiquíssimo egípcio, cujos escritos sagrados eram de autoridade praticamente canônica. Fludd cita repetidas vezes os ditados do santo Hermes, atribuindo-lhes um peso igual ao do Gênesis e do Evangelho de São João, que ensinariam as mesmas verdades; ou um peso igual ao das sentenças de um priscus theologus que antecedera bastante Platão e os platônicos, de quem haviam absorvido os ensinamentos.
Não chega a ser um exagero dizer que, em quase toda página de Fludd, encontra-se uma citação da tradução latina de Ficino do Corpus hermeticum. Ele também utiliza frequentemente o Asclépio, bem como outros escritos herméticos, mas o Pimandro, de Ficino, era seu principal esteio. As comparações das citações de Fludd com o texto de Ficino insinuam a hipótese de que Fludd o conhecia de cor e o citava de memória, sempre fielmente, mas às vezes com alguma liberdade. Ele cita algumas vezes os comentários de Ficino, e é claro que absorveu totalmente deles e da subsequente tradição hermética cristã a atitude que considerava Hermes Trismegisto de acordo com Moisés, sobre a criação do mundo e as prefigurações da Trindade.
Seria enfadonho ilustrar pormenorizadamente essas afirmações, e prefiro tomar como exemplo a dedicatória ao leitor do primeiro volume do Utriusque cosmi. . . historia. Aqui, Fludd cita “Trismegisto, o mais divino dos filósofos, e próximo a Moisés”, que declarou no Pimandro que ao homem foram dadas as forças dos Sete Governadores (passagem citada no latim de Ficino), sendo que ele podia, por isso, conhecer a natureza das estrelas e a sua ação sobre as coisas da Terra, além de se elevar às maiores alturas e compreender toda a verdade. A mens humana seria feita de vida e luz, à imagem de Deus; e quando o homem se conhece, ele se torna igual a Deus (novamente citado no latim de Ficino). É, portanto, nessa base hermética do homem como mago, que Fludd prossegue seu relato sobre os dois mundos, o macrocosmo e o microcosmo, em seu Utriusque cosmi. . . historia.
O relato da criação com que inicia o primeiro volume, ilustrado pelas notáveis gravuras de De Bry, está baseado na habitual fusão do Pimandro hermético com o Gênesis, além de ser acompanhado copiosamente por citações de ambos. Uma obra subsequente, a Philosophia moysaica e também mosaico-hermética; a figura hieroglífica da página de rosto é explicada no texto como uma referencia ao “Tenebrae fuerunt super faeiem abyssi. Genesis I. Et Hermes, Erat umbra infinita in abysso, aqua autem & Spiritus tennis in abysso inerante”. De fato, como renascentista, Fludd vê em Hermes o Moisés egípcio e o trinitariano quase cristão.
Assim como Pico delia Mirandola, a quem frequentemente se refere com respeito, esse tipo de hermetismo ficiniano, do qual aliás está absolutamente saturado, Fludd acrescenta o cabalismo. Não posso aqui me encarregar de discutir quanto Fludd, de fato, sabia da cabala e de hebraico. Ao afirmar que ele acrescenta a cabala ao hermetismo ficiniano, quero dizer que, no cosmos de Fludd, acima das esferas dos elementos e das dos planetas, existe a ascensão às mais altas esferas das hierarquias pseudodionsíacas de anjos, como em Ficino, e que tais anjos são idênticos ou quase aos sefirots da cabala. Eis o esquema em que resultou a junção, em Pico, da cabala e da magia; num capítulo precedente, usei as gravuras da obra de Fludd para ilustrá-lo. O esquema está exposto e explicado num texto do primeiro volume do Utriusque cosmi. . . historia, nos capítulos sobre demônios e anjos, nos quais as hierarquias angélicas pseudo-dionisíacas são relacionadas aos demônios estelares, ou aos anjos; no De philosophia moysaica, no capítulo dedicado aos sefirots para o qual Fludd utilizou o De arte cabalística, de Reuchlin, os sefirots são relacionados às hierarquias pseudodionisíacas.
Assim vivia Fludd, inteiramente imerso no esquema, no qual operava com a magia e a cabala o mago da Renascença — um esquema mantido num vago cristianismo, graças às suas conexões com as hierarquias cristãs dos anjos. Seria Fludd um “operador”, isto é, um mago praticante? Suas frequentes citações do De occulta philosophia, de Agripa, tornam razoavelmente certo dizer, no meu entender, que ele o era. Mersenne certamente assim pensava, e firmemente o acusou de ser um mago.
Nesse pequeno esboço sobre Fludd, pretendo apenas situá-lo no seu lugar, no contexto geral da história. E esse lugar parece-me ser, com segurança, conforme segue. Em data bastante tardia, após ter sido fixada a data da Hermética e de estarem quase a se desvanecer as perspectivas da Renascença para dar lugar às novas tendências do século XVII, Fludd reconstruiu completamente o modo de ver renascentista. Era como se vivesse o apogeu do intenso entusiasmo místico despertado pelas traduções de Ficino da Hermética, ou logo depois de Pico ter completado a magia com a cabala. Isso, naturalmente, é um exagero, pois houve muitas influências posteriores. Por exemplo, Fludd conhecia o muito útil texto de magia renascentista compilado por Agripa. Eu diria também que ele conhecia igualmente algo sobre as tradições do hermetismo religioso do século XVI, do tipo puramente místico e não mágico, tal como o de Foix de Candale. Mas o entusiasmo de Fludd, um crente da Hermética e dos livros canônicos de valor igual ao das Escrituras, não conhecia limites. Ele escreveu na Inglaterra do século XVII, mas expressou, por uma espécie de ação retardada, o tipo mais intenso de hermetismo religioso do século XVI.
Fludd (1574-1637) foi quase um contemporâneo de Campanella (1568-1639). Ambos podem ser descritos como hermetistas religiosos retardatários, mas eles não provêm da mesma fonte. Campanella pertence à tradição italiana original, ainda viva e em desenvolvimento; aliás, Bruno e Campanella, por não darem realce à cabala e ao intenso naturalismo do culto hermético, transformaram a tradição renascentista em algo diferente; comparado a eles, Fludd é um reacionário que volta às origens, a Ficino e a Pico. Além disso, Fludd carecia da formação dominicana, que tornou tão poderosos e formidáveis os dois magos dominicanos, ambos como filósofos e missionários. Não obstante, existem pontos que poderiam ajudar um estudante de Fludd pela comparação com Campanella e Bruno. O De santa monotriade, de Campanella, baseia-se num tipo de trinitarianismo hermético semelhante ao utilizado por Fludd, embora tal livro não pudesse tê-lo influenciado, uma vez que a Theologia de Campanella, da qual faz parte, jamais foi publicada. A comparação de Fludd com Bruno poderia ser até mai? reveladora. Conforme já assinalamos, Fludd, embora não se pareça com Bruno quanto ao modo de evitar o trinitarianismo e quanto à atitude, de um modo geral, extremista, tem na sua obra pontos onde se pode sentir uma aproximação com Bruno. Pelo menos uma das obras de Bruno, o De imaginum compositione, era, em minha opinião, conhecida de Fludd, pois se reflete nos seus sistemas mnemônicos que ajudam a explicá-la. E alguns dos diagramas mágicos de Bruno, particularmente os dos poemas latinos, Fludd possivelmente conheceu. A interpretação mística de Fludd sobre o compasso poderia igualmente ser examinada sob a ótica da misteriosa controvérsia de Bruno com Fabrizio Mordente.
Em suas primeiras obras, Fludd anuncia ser um discípulo rosa-cruz, a misteriosa seita ou sociedade secreta aparentemente originária da Alemanha e de um meio luterano. A evidência quanto às ideias dos rosa-cruzes é torturantemente imprecisa, não havendo nenhuma certeza de que eles tenham sido uma seita organizada. Os rosa-cruzes representam uma tendência do hermetismo renascentista e de outros ocultismos que caíram na clandestinidade, no século XVII, transformando o que havia sido um modo de ver o mundo, associado às filosofias dominantes, em preocupações de sociedades secretas e grupos minoritários.
A conexão com os rosa-cruzes situa Fludd dentro de tal tendência. O fato de ele haver tardiamente revivido as concepções de um mago da Renascença aconteceu em tempos em que tal mago — expulso pelo pensamento dominante do século XVII da alta posição, onde o haviam colocado Ficino e Pico — entrava na clandestinidade, transformando-se em algo do tipo rosa-cruz.