FRANCES YATES — Excertos de «O Iluminismo Rosa-Cruz»
Robert Fludd iniciou sua carreira rosa-cruciana do modo habitual, ou seja, publicou duas obras manifestando admiração pelos Irmãos R.C. e seus objetivos expostos nos manifestos. Os dois livrinhos, ambos em latim, publicados por Fludd em seus primeiros esforços para entrar em contato com os Irmãos R.C., eram: o primeiro, Compendious Apology for the Fraternity of the Rosy Cross, fazendo desaparecer num Flood (na correnteza da água) (fez um trocadilho com seu nome), as manchas da suspeita e infâmia com as quais ela fora caluniada, — daqui em diante referido como Apologia; e segundo, The Apologetic Tractatus for the Society of the Rosy Cross, de ora em diante mencionado por Tractatus. Foram publicados por Godfrey Basson, em Leiden, nos anos de 1616 e 1617.
Godfrey Basson era filho de Thomas Basson, inglês estabelecido em Leiden como impressor e editor. Thomas, que fora um protegido do Conde de Leicester, interessava-se pelo ocultismo. Foi ele quem publicou em 1597, o Thamus, de Alexander Dicson, discípulo de Giordano Bruno, o qual é uma arte mágica da memória, imitação do trabalho de Bruno.
A Apologia de Fludd inicia-se com uma tendência para evocar as tradições da antiga sabedoria dos prisci theologi, principalmente a de “Mercurius Trismegistus” o qual segundo afirmam, é a mais importante autoridade dessa sabedoria, constando ambas de seus “Sermons” (isto é, Corpus Hermeticum) e do Esmerald Table, aquela sucinta declaração da filosofia hermética, que foi tão grandemente reverenciada pelos alquimistas. Portanto é aderindo à filosofia “egípcia”, a filosofia hermética do suposto sacerdote egípcio, Hermes Trismegistus, que Fludd se aproxima dos Irmãos R.C..
Em seguida, ele conta como a celebridade da Fama, da Sociedade da Rosa-Cruz, atravessou toda a Europa e chegou aos seus ouvidos. Fludd não vira apenas os dois manifestos, a Fama e a Confessio; vira também o ataque a eles feito por Libavius. Este — segundo ele afirmou — atacara implacavelmente os Irmãos R.C. e num trecho acusara-os de insubordinação política ou sedição: “Nam uno loco fratres in seditionis suspicionem adduxit”. Prevaleço-ME disto para fazer uma referência à análise de Libavius dos trechos sobre o Império nos manifestos, nos quais ele encara como desígnios rebeldes. Fludd rejeita as críticas de Libavius e aprova os manifestos. Os Irmãos — sustenta ele — são verdadeiros cristãos. Não são perversamente mágicos ou sediciosos. Não teriam alardeado a sua mensagem, se fossem malvados. Iguais aos luteranos e calvinistas, são contra o Papa, entretanto não são hereges. Talvez esses Irmãos estejam realmente iluminados por Deus. Fludd suplica-lhes encarecidamente que o recebam em sua companhia.
O Tractatus, do ano seguinte, inicia-se com o mesmo prefácio da Apologia, mas apresenta nova defesa da “mágica virtuosa”. Existem boas e más qualidades de mágica, caso, porém, a boa qualidade é excluída ou condenada, “eliminamos toda a filosofia natural”. Os magos são peritos na matemática — diz ele — apresentando então a habitual lista das maravilhas mago-mecânicas, começando com a pomba de madeira de Architas e prosseguindo com as maravilhosas proezas de Rogério Bacon, Alberto Magno e outros (compara as listas dessas maravilhas dadas por Agrippa, Dee, e praticamente todos os escritores sobre a mecânica na fase mágica). Os Irmãos R.C. — continua Fludd — empregam apenas as boas qualidades da mágica, matemática e mecânica, e a mágica da Cabala, que ensina como invocar os sagrados nomes dos anjos. A Magia, a Cabala e a Astrologia, conforme estudadas pelos Irmãos R.C., são científicas e sagradas.
Em seguida, Fludd passa em revista as artes e ciências, encarecendo que elas estão precisando de progresso. A filosofia natural, a alquimia, a medicina são todas deficientes. Segundo ele, a Fama rosa-cruciana acelerou seu desenvolvimento. Ele parece ter visto essa acepção na misteriosa caverna geométrica e outros aparelhos fantásticos contidos na Fama; para Fludd eles representam as ciências matemáticas, de cuja melhoria a Fama está precisando no seu programa de reforma.
Fludd enumera as artes matemáticas: geometria, música, arte militar, aritmética, álgebra e ótica, todas elas carecendo de desenvolvimento e reforma. Encontramo-nos dentro da esfera do Prefácio de John Dee a Euclides, com a sinopse das artes matemáticas alistadas por Vitrúvio, e das quais a arquitetura é a principal. Num outro lugar, examinei a influência do Prefácio de Dee sobre Fludd. No Tractatus, Fludd parece admitir que tal programa de reforma das artes matemáticas é o que os Irmãos R. C. desejam e nele insistem em seus manifestos; o que equivale dizer que os manifestos R. C. são influenciados por Dee, e que o movimento mágico por eles empreendido é do tipo matemático e científico ensinado por Dee. Em vista dos fatos que foram descobertos sobre a influência da Monas hieroglyphica, de J. Dee, sobre os manifestos e o Chemical Wedding, as suposições de Fludd estão provavelmente corretas. Prosseguindo a sua sinopse sobre os assuntos que estão a exigir uma reforma, ele enuncia em seguida a ética, a economia, a política, a jurisprudência e a teologia. Depois disto, volta-se para a profecia e a invocação do Espírito Santo e dos anjos como imprescindíveis ao movimento, e termina com alusões aos maravilhosos poderes ocultos da música.
Finalmente, conforme o fez no opúsculo do ano anterior, Fludd se dirige aos Irmãos R. C. pedindo para ser admitido em seu trabalho.
O pedido de Fludd para a reforma das ciências tem um eco baconiano e em parte pode ser influenciado pelo The Advancement of Learning. Mas a ênfase sobre a matemática e a invocação dos anjos se assemelha mais a Dee, e poderia parecer que fosse o tipo de programa intelectual de Dee, que Fludd reconhecera nos manifestos rosa-crucianos.
Alguns anos depois, ao defender-se dos ataques inimigos na Inglaterra, que o acusavam de ser um “rosa-cruciano”, devido às suas desculpas por aqueles “Filósofos e Teósofos eruditos e famosos”, que se denominavam “Irmandade da Rosa-Cruz”, Fludd alegou que não recebera resposta dos Irmãos R.C., embora julgasse que a “Pansofia, ou conhecimento universal da Natureza por eles professada, devia ser igual à sua própria filosofia”. Esta foi sempre a linha habitual sobre indagações provenientes dos manifestos rosa-crucianos, e que jamais receberam resposta, ocorrendo sempre o silêncio após os sons da trombeta. Embora Fludd pareça acreditar na existência real dos Irmãos R. C, ele admite jamais ter visto um.
No caso de Fludd, poderia parecer que apesar de tudo, algo ocorreu em resposta à sua Apologia e ao seu Tractatus. Deve ter sido convidado para publicar seu trabalho no Palatinado com a firma De Bry. Isto pode significar que sua defesa dos Irmãos R. C, contra Libavius, fora reconhecida como prova de seu apoio à política do Palatinado.
Quando mais tarde defendendo-se da acusação feita contra ele na Inglaterra, de que tivera seus livros publicados “além dos mares”, porque a magia neles contida proibia a sua publicação naquele país, Fludd cita uma carta de um erudito alemão, afirmando que o impressor (isto é De Bry), antes de imprimi-lo mostrara o volume a homens cultos, inclusive a alguns jesuítas, que tinham admirado e recomendado a publicação, embora esses últimos reprovassem as suas partes sobre a geomancia, desejando que fossem omitidas. Todavia, e evidentemente, não foram omitidas. Fludd está convencido de que seus volumes não são desagradáveis aos calvinistas, entre os quais encontra-se seu editor, e nem tampouco aos papistas, que os aprovaram, porém ignora o fato de que de acordo com ele mesmo, os jesuítas não os tinham sancionado inteiramente.
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O primeiro volume de Fludd, em Oppenheim, a “História do Macrocosmo” de 1617, é oferecido a Jaime I, com uma dedicatória muito imponente, na qual Jaime é aclamado como o “Ter Maximus”, o epíteto sagrado para Hermes Trismegistus, e como sendo o príncipe mais poderoso e sábio do mundo. O sentido dessa dedicatória sobressai agora, quando compreendemos mais perfeitamente o significado da publicação dos livros de Fludd, em Oppenheim. Ele e o seu editor do Palatinado estavam admitindo o interesse de Jaime I num trabalho publicado nos domínios de seu genro. Estavam atraindo esse príncipe poderoso para a sua filosofia, atribuindo-lhe um desempenho hermético. Caso esse livro tivesse grande circulação na Alemanha ou na Boêmia, teria confirmado a impressão, ou ilusão, de que os movimentos do pensamento no Palatinado tinham a aprovação do Rei Jaime.
Podemos também começar agora a observar mais claramente a situação, através do ponto de vista de Jaime. Seu genro e os conselheiros e amigos do mesmo não estavam apenas tentando envolver Jaime numa linha de ação política, que ele não aprovava — a política ativista que se dirigia para os grandes empreendimentos da Boêmia. Estavam também tentando envolvê-lo numa filosofia que ele reprovava. Jaime sentia um temor terrível de qualquer coisa que sugerisse magia; essa era a sua mais arraigada neurose. Condenou Dee, não o receberia e submeteu-o a uma espécie de exílio. E no momento, nos domínios de seu genro, é publicado um imenso trabalho do tipo da filosofia hermética de Dee, a ele consagrado, e tentando com essa dedicatória atraí-lo para aquele ponto de vista, ou causar a impressão de ser favorável ao mesmo. Não é de admirar que o segundo volume da “História do Macrocosmo e do Microcosmo” não tenha sido dedicado a Jaime, e que Fludd parece ter encontrado na Inglaterra dificuldades ocultas para a publicação de suas obras.
Em sua réplica às acusações de ter tido seus livros publicados além dos mares porque continham a magia proibida, Fludd disse que o motivo para publicá-lo fora do país, era porque a firma De Bry proporcionava-lhe melhores ilustrações do que seria possível na Inglaterra. As ilustrações apresentam visualmente os complexos “hieróglifos” da filosofia de Fludd. Os gravadores seguiram exatamente suas instruções, como poderá ser constatado por todos os que estudam cuidadosamente o texto de Fludd em relação às ilustrações. As constantes idas e vindas de mensageiros entre Londres e o Palatinado, mantendo contato com a princesa inglesa em Heidelberg, devem ter facilitado muito o trabalho de um editor do Palatinado ao publicar materiais manuscritos provenientes da Inglaterra.
A Utriusque Cosmi Historia, de Fludd, ou Historia dos Dois Mundos — o Grande Mundo do Macrocosmo e o Pequeno Mundo do Homem, o Microcosmo — representa urna tentativa para alcançar e apresentar com alguma clareza a filosofia baseada no projeto harmonioso do cosmos “e as harmonias correspondentes no homem. As ilustrações gravadas ajudam muito na apresentação desses esquemas cósmicos. Basicamente, o esquema de Fludd é o mesmo daquele formulado no início da Renascença, quando Pico delia Mirándola adicionou o renascimento da Cabala hebraica à restauração da filosofia hermética, estimulado pelo emprego dos textos herméticos, de Ficino, recentemente recuperados. Os volumes de Fludd estão cheios de citações dos textos herméticos na tradução latina de Ficino, e “Mercurius Trismegistus”, o suposto autor egípcio daqueles textos, é a autoridade mais respeitada, que ele concilia com a autoridade bíblica, através da interpretação cabalista Ao Gênesis. O esquema cósmico que daí resultou é um no qual Jeová, apresentado na forma do Nome de Deus em hebraico, reina glorioso sobre os esquemas dos círculos concêntricos consistindo em anjos, estrelas, elementos, com o homem no centro. As conexões astrais correm através de todos, e as analogias íntimas entre as harmonias macrocós-micas tornam-se ainda mais próximas do que eram na época de Pico e Ficino, por meio da influência de Paracelso, que tornara essas correspondências mais exatas, através de suas teorias médico-astrais.
O segundo volume de Fludd, sobre o microcosmo, inclui uma parte importante à qual ele chama de “história técnica”, ou o estudo das artes e ciências empregadas pelo homem. Estas são baseadas na natureza, a qual por sua vez é baseada nos números. Conforme já mostrei em meu Theatre of the World, a subdivisão de Fludd sobre tecnologia, acompanha de perto o prefácio da matemática de Dee para Euclides, no qual ele reiterava o prosseguimento das ciências matemáticas agrupando-as — conforme fez Vitrúvio — sob a arquitetura, como sendo a rainha das ciências matemáticas.
A “História dos Dois Mundos”, de Fludd, é em geral uma apresentação da Magia e Cabala Renascentistas, com o acréscimo da Alquimia, conforme desenvolvida por Paracelso, e dos melhoramentos introduzidos por John Dee nessas tradições. Se os manifestos rosa-crucianos são interpretados como uma ficção, através da qual é apresentado um pedido de reforma baseado nos novos desenvolvimentos da Magia, Cabala e Alquimia introduzidos por Paracelso e John Dee, então pode ser observado que a filosofia de Fludd era realmente “rosa-cruciana”, uma filosofia renascentista modernizada, tendo sido diretamente bem recebida como tal, mediante a sua publicação no Palatinado.
O estudo da cultura do Palatinado, sob Frederico V, deve incluir como um de seus mais importantes representantes, Salomon de Caus, o projetista do Hortus Palatinus, o engenhoso arquiteto e mecânico que produziu aquelas maravilhas mago-mecânicas, as quais ajudaram a transmitir uma aura de mistério ao castelo de Heidelberg. De Caus trabalhou dentro da harmoniosa visão do mundo, conforme é demonstrado pelo seu veemente interesse pela música e órgãos combinados com o intenso vitruvianismo, deles derivando a sua mecânica na obra Les raisons des forces motivantes. Exceto pelo Hortus Palatinus, os trabalhos de De Caus não foram publicados pelo editor do Palatinado; esta exceção porém é importante, pois devido ao Hortus Palatinus publicado por De Bry e com gravações feitas por Merian, De Caus ingressa no círculo. Como um praticante tecnólogo e arquiteto de jardins, De Caus proporcionou o ambiente harmonioso para a cultura do Palatinado, em seu trabalho para a corte de Heidelberg.