Heinrich Zimmer — FILOSOFIAS DA ÍNDIA
O Budismo Mahayana
Temos o testemunho da tradição para afirmar que no grande concílio budista reunido por Kaniska (o “Quarto Concílio Budista” ocorrido, conforme algumas fontes, em Jalandhar ao leste do Punjab, segundo outras em Jundalavana, na Caxemira), estiveram presentes não menos de dezoito seitas budistas. A autenticidade dos informes deste concílio tem sido questionada. Não obstante, uma série de evidências dão conta de que uma mudança crítica e de peso ocorreu nos ensinamentos budistas naquele tempo. As práticas religiosas da bhakti, que já eram notórias na arte popular e nos editais imperiais do reinado de Asoka, começaram a receber o apoio deliberado dos filósofos budistas. Uma literatura canônica budista em sânscrito (não mais em páli, a língua do Cânone anterior guardado como tesouro no Ceilão), que data do período de Kaniska, defende a ideia (já representada na arte popular budista) de que o Buda deve ser reverenciado como um ser divino e que muitos Buda (do passado e do futuro) assistem ao devoto em suas tentativas para alcançar o estado búdico latente dentro dele. Pois, enquanto a concepção ortodoxa precedente havia representado como objetivo a iluminação individual (o estado de arhat), que só seria possível imitando-se literalmente a rigorosa renúncia do mundo feita pelo histórico monge e príncipe Gautama Sâkya-muni, o novo ensinamento pregava que o estado búdico (o estado de um Redentor do mundo) é o fim próprio do homem, e que, desde que todas as coisas são em realidade seres búdicos, todas as coisas são potencial e atualmente Salvadores do Mundo.
“E como se um certo homem abandonasse seu pai e recorresse a algum outro lugar. Vive ah, em terras estrangeiras, durante muitos anos, vinte, trinta, quarenta ou cinquenta. No decorrer do tempo, o pai torna-se um homem influente, mas seu filho é pobre e, buscando com o que sobreviver, vagueia em todas as direções.” O pai é infeliz, pois não tem filho, mas um dia, sentado na entrada de seu palácio tratando assuntos importantes, viu seu filho, pobre e maltrapilho. O filho, então, pensa: “Inesperadamente vim aqui deparar-ME com um rei ou um nobre. Pessoas como eu não têm nada que fazer aqui; vou-ME embora; na rua dos pobres provavelmente encontrarei comida e roupas com muito menos dificuldade. Não vou mais ficar neste lugar, pois corro o risco de ser pego para fazer trabalhos forçados ou sofrer algum outro ultraje.” O pai ordena que seu filho seja levado até ele; contudo, antes de lhe revelar seu nascimento, emprega-o durante alguns anos em todos os tipos de serviço, primeiro nos mais insignificantes, depois nos de maior importância. O pai trata seu filho com carinho paternal, mas o filho, embora tomando conta de toda a propriedade de seu pai, vive em uma pequena casa de sapé e considera-se pobre. No final, quando sua educação se completa, fica sabendo a verdade.
Da mesma maneira, somos filhos do Buda e o Buda nos diz hoje: “Vós sois meus filhos”. Mas, como o pobre, não temos ideia de nossa dignidade, de nossa missão como futuros Buda. Assim, o Buda nos fez refletir sobre doutrinas inferiores. A elas nos temos dedicado, buscando tão só o nirvana como pagamento por nossos dias de trabalho, e descobrimos que já é nosso. Entretanto, o Buda nos fez transmissores do conhecimento dos Buda e o temos apregoado sem desejá-lo para nós mesmos. Finalmente, o Buda nos revelou que este conhecimento é nosso e que somos Buda como ele. (Saddaharmapuodarika)
Esta é a doutrina que tem sido designada, de maneira algo complacente, de “Grande Veículo” (Mahayana), a barca na qual todos podem navegar. Em contraposição está o “Pequeno Veículo” (Hinayana), o caminho dos solitários, “luzes para si mesmos”, que navegam pelo difícil istmo da liberação individual. O Grande Veículo, com seu panteão de múltiplos Buda e Bodhisattva, pequenos moinhos de preces, incenso, gongos e imagens esculpidas, os terços, as sílabas murmuradas, geralmente foi depreciado pelos críticos ocidentais modernos, considerando tudo isso uma vulgar popularização da doutrina do Buda promovida pelo advento de povos bárbaros (certamente não eram os gregos, mas os saka e os yueh-chi) às províncias do noroeste indiano. Se algo está claro é o fato de que o Grande Veículo manifesta com toda sua significação o paradoxo implícito na ideia do estado búdico. Nagarjuna (aprox. 20O d.C), fundador da escola de filosofia budista Madhyamika, suprema expressão da via Mahayana não foi de maneira alguma um vulgarizador, mas um dos mais sutis metafísicos que a espécie humana já produziu. Asanga e seu irmão Vasubandhu (aprox. 300 d.C), que desenvolveram a escola Yogacara)) do ((Mahayana, da mesma forma merecem o respeito de qualquer pensador que se proponha compreender realmente a racionalização que fizeram da doutrina do Vazio elaborada por Nagarjuna. E Asvaghosa, o altivo contemporâneo de Kaniska (aprox. 100 d.C), não pode haver sido um bajulador de bárbaros, ainda quando sua epopeia da vida do Buda, o Budacarita, apresente características muito pouco monásticas.