Não tendo propriamente qualquer órgão para a filosofia e sabendo escapar, quando necessário, à sua influência, recolhendo-se à sua própria disciplina, Goethe deixa-nos perceber, paradoxalmente, vestígios dos aspectos mais decisivos da possibilidade de uma prosa pensativa, de uma prosa teórica. Na verdade, os temas goethianos obrigam mesmo a um retorno a algumas dessas questões. O pensamento da forma apresenta-se no interior de constrangimentos que lhe são inerentes e que solicitam uma tarefa de reflexão profunda, constante, sobre a linguagem teórica e os seus limites, reflexão que se reconhece no tema benjaminiano da eliminação do indizível.
Em Dichtung und Wahrheit (12. Buch, HA 9, pp. 512-514) no momento em que evoca longamente Hamann, Goethe introduz um comentário à máxima orientadora e constitutiva do pensar e do agir hamannianos: «tudo o que é isolado é condenável», pondo em relevo que a sua efectividade se descobre abundante na vida e no acto poético, mas enfrenta as maiores dificuldades no reino do pensamento que visa comunicar, o reino da doutrina, da teoria [die Lehre]. A doutrina origina-se e forma-se precisamente a partir de uma experiência de separação, irredutível, por isso aquela forma de discurso que engloba, como condição mesma da sua subsistência, a comunicação, não é identificável com a poesia. Na verdade, trata-se de uma forma doutrinária, teórica, da palavra, cuja ordem é a da argumentação, da discussão, discurso que exige premissas e conclusões, conduzido por regras analisáveis e prescritivas. Este é, finalmente, o embaraço, o nó tematizado como problema de linguagem nos seus textos de natureza teórica: para se comunicar, a palavra tem de se separar.
Enquanto atitude judicativa e determinativa, nomear é separar, comunicar é separar duplamente. Goethe experienciou os extremos da linguagem, precisamente no momento em que procurou comunicar as suas observações e descrições, no momento da prosa teórica. Ele não quer, porém, encontrar a palavra única, a palavra univoca, para designar as coisas ou, melhor, as formas, porque reconhece os perigos da reificação por ela implicados, i. e., não há uma única palavra, uma palavra univocamente tomada que possa dar conta de um ser, de uma forma. O nome é um sinal de um acto de separação em relação à coisa, mas não deverá fixar-se como um conceito inamovível, como se designasse uma coisa na sua verdade, quando apenas designa a coisa numa das suas paragens; um conceito é um nome que fixa um momento, uma fase de uma coisa (não tem domínio sobre o que é vivo), é uma forma petrificada, uma abstracção. Num pensamento da forma, a palavra tem de procurar dizer a coisa na sua passagem, no seu estar em vias de ser, tem de permitir o vislumbre de todas as passagens, de todas as variações de que ela é passível; a palavra não aspira a transformar-se em conceito, anela por transformar-se em símbolo, procurando essa transparência entre a coisa e o nome, essa restituição da potência do nome, que Benjamin considerava como o alvo da eliminação do indizível. No entanto, Goethe havia de saber este alvo impossível, exactamente porque, quando se comunica o nome, separa-se duplamente o nome da coisa, e porque não há nome (judicativo e determinativo) que não esteja um ou mais pontos afastado da coisa: a linguagem teórica permanecerá para ele irremediavelmente fechada nos seus limites, i. e., implica suspensão, separação, purificação. Sabendo que o processo de aparecimento e de crescimento das formas nunca poderá ser reconhecido através do acto de nomear, enquanto se tomar o nome como um conceito, ele quer levar o nome, quer tomar o nome como vozeando multiplamente, procurando adaptar-se à multiplicidade das disposições de uma só força (por ex., a da expansão ou a da contracção, forças originárias), procurando o nome que possa restituir a ideia.
Encontramos as duas mais notáveis referências à escrita filosófica e ao destino do filósofo nos Materialen zur Geschichte der Farbenlehre e no texto dedicado a Winckelmann, na já referida secção intitulada «Philosophie». No primeiro caso, Goethe compara a escrita filosófica com escrita poética, esclarencendo-lhe o parentesco e confirmando-lhe a diferença; quer a poesia, quer a filosofia na sua forma mais elevada, socorrem-se de imagens, símiles, expressões figuradas, só que as escolas de filosofia utilizam, a maior parte das vezes, símbolos unilaterais e, por eles, pretendem dominar o todo: pretendem significar completamente o corporeo através do espiritual e o espiritual através do corpóreo, não admitindo, por um lado, a co-naturalidade de um e de outro, e, por outro, anulando a sua irredutibilidade, reduzindo equivocamente a sua dignidade própria. O corpóreo e o espiritual só se expressam um pelo outro, embora haja em cada um uma resistência própria que impede que se dissolvam um no outro, por preponderância de um deles. A ser assim, diz Goethe, os objectos nunca serão penetrados, impede-o a unilateralidade (HA 14, pp. 105-106). No segundo caso, o leitor encontra uma admirável justeza compreensiva da especificidade da tarefa filosófica e das razões do «ódio» de que é alvo por parte dos homens comuns e dos homens de ciência, a sua grandeza e as suas misérias. O filósofo apropria-se das coisas, procedendo à sua purificação, procurando significá-las pela transformação do particular em universal: tudo o que é assim apropriado converte-se em objecto do pensamento. Por isso, a filosofia só pode agir sobre as coisas do mundo, na medida em que estas lhe estejam ordenadas, porque ela não admite receber as coisas como se lhe fossem dadas, só o concebido das coisas é recuperado delas: esta é a situação peculiar da filosofia. O filósofo é um ser desconfortado que trabalha em vão numa tarefa vã — realizar a passagem à vida —, quando se começou por separar tão radicalmente dela (procurando o comum a partir de um acto de suspensão), descosendo e voltando a descoser, vezes sem conta, os enleios da palavra com a coisa, através de «palavras singulares, combinações estranhas e explicações bizarras, que não coincidem nem com os estados particulares de todas as pessoas, nem com as suas necessidades momentâneas, por isso ela [a filosofia] é injuriada por aqueles que não conseguem descobrir o motivo pelo qual ela talvez ainda fosse compreensível» (HA 12, p. 119)1. É deste modo que Goethe tematiza aquilo a que poderíamos chamar a esotérica própria do discurso filosófico e é por essa esotérica que segundo ele se precipita a sua mesma falha, a dificuldade da passagem para a vida: aquele movimento ininterrupto de descosedura não há-de permitir acabar o manto, que o cobre, retalhado.
As unilateralidades interpretativas procedem desse acto de purificação, próprio do acto pensativo, e que Goethe descreve como o gosto de negar aquilo que constitui obstáculo ao acto de tomar a unilateralidade pelo todo. Todos os confrontos teóricos têm origem no isolamento das faculdades e no não-reconhecimento da correspondência entre a coisa que se conhece e os procedimentos subjectivos, todos eles radicam na ignorância de que existe uma imaginação sensível exacta [eine exakte, sinnliche Phantasie]2.
E, no entanto, não pode haver comunicação teórica, nenhuma doutrina pode constituir-se sem separação. É inerente à comunicação de uma doutrina um momento de unilateralidade, de separação; quer dizer, a linguagem, no seu uso teórico, tende a separar o que quer dizer do modo como quer dizer e tende a confundir o resultado dessa separação com o que une a intenção ao dizer. Tendencialmente, a teoria anula o «para todos os lados» da palavra poética, pretende o univoco, pretende explicar. Só que, mesmo aqui, Goethe pede à linguagem discursiva uma metamorfose, que é condição para que a teoria não se torne estéril: procurar que a palavra traduza — sempre incompletamente, porque a palavra que comunica separa sempre — a plenitude do que aparece, exigindo que o discurso teórico seja simbólico.
A heurística goethiana é uma forma de encontro, de reencontro, que não supõe uma suspensão metódica. Regressar, voltar à vida, esse movimento que o filósofo dificilmente consegue realizar, é próprio do modo morfológico de pensar; de acordo com ele, o acto cognitivo tem de ser um acto tal que produza, que crie. O acto cognitivo há-de mostrar-se como um ser vivo e uma obra de arte, agindo desde o interior, pleno, constantemente habitado pela lei da sua conformação, lançando as suas sombras, criando uma atmosfera à sua volta, haurindo das fontes vivas, antecipando os próprios movimentos que descobre. O que é preciso evitar a todo o custo é que aquela passagem seja interrompida, sob perigo de definhamento, de infertilidade, de morte. A passagem para a vida não significa apenas uma preocupação adaptativa ao que há para viver todos os dias, significa, sobretudo, não querer cortar os elos que permitem à razão a sua própria sobrevivência, implica a aceitação do que é dado e a reconciliação repetida com ele (sabendo que a reconciliação é atravessada por uma nostalgia, comporta sempre uma nostalgia irreprimível), através da atenção a tudo quanto há. É essa a fisionomia inconfundível do projecto morfológico goethiano, sustentado sobre o pressuposto de uma razão passiva (capaz de sofrer a acção alheia), tradutora, moldável pela atmosfera própria da coisa que a atrai e a afecta, e que é expressa precisamente por intermédio de uma imaginação sensível exacta.
Se Goethe não pensou sistematicamente sobre o pensar, não é menos visível que foi tomado por essa vertigem, transformando-a em objecto sensível. Nessa medida, não sendo o pensamento goethiano identificável sem dificuldade com o de um projecto filosófico em sentido estrito, é com igual dificuldade que se pode tomar como alheio à filosofia: a sua morfologia é um modo inédito do pensamento se conformar.