Jerônimo Bosch — PACTO COM O DIABO
Contribuição, tradução e notas de Antonio Carneiro
A procura da unidade, e, portanto, do divino em si mesmo e para além de si mesmo, é do destino do homem do Ocidente; não se será surpresa que tenha pouco sobressaído na imagética diabólica. Para nos mantermos no aspecto do Antagonista, veremos que só a arte romana, aliás, profundamente impregnada do Oriente, concebeu imagens aceitáveis. A doçura angélica produzida por São Bernardo e São Francisco deu um golpe fatal em Satã; a arte gótica demasiada humana para ter sabido causar boa impressão ao Diabo; os Mistérios contribuíram a lhe transformar em um personagem cômico, provido de acessórios infantis, tomado emprestado da bateria da cozinha: garfo, caldeirão, grelha e concha. Foi preciso aguardar a Renascença, para reencontrar o coitado sob seus aspectos verdadeiramente demoníacos. Pois, mais do que à Idade Média, Jerônimo Bosch pertenceu, embora já se tenha dito, aos tempos modernos. Em um estudo psicanalítico das civilizações, esse brusco transbordamento de satanismo apareceu como um símbolo dos primeiros golpes desferidos à fé. Os exegetas católicos sem dúvida poderiam ver aí a premonição da heresia que se dissolveu sobre o século seguinte. Para o historiador das ideias, Jerônimo Bosch pertenceu a essa crise de irrealismo que afetou século XV, tomado entre a fé medieval e o racionalismo nascente. Johan Huizinga, em uma tese célebre1, mostrou como a Idade-Média acabou no maravilhoso do sonho, irrealizando todos seus ideais, cortês, cavalheiresco, divino; o mesmo ocorreu para esse negativo2do ideal: Satã; e do sonho tenebroso Jerônimo Bosch se fez o ilustrador, como Fra Angélico o tinha sido do sonho de luz. São bem as zombeteiras criações do macaco de Deus, cujas infernais legiões oprimem os humanos, nos quadros do pintor neerlandês. No universo das formas inertes ou vivas e mesmo entre os objetos inventados pelo homem, o Príncipe do Heteróclito tirou do poço às mãos cheias, lançando pelo mundo os produtos absurdos de seu infernal bazar (fig. 16 — Jerônimo Bosch. O Pacto com o Diabo3, detalhe do Jardim das Delícias, Madrid Prado, segundo J. Combe, Hieronimus Bosch, fora de texto, entre as páginas 550-5514). Pelo princípio da desordem do qual nasceram, esses monstros portam neles um poder maléfico, eles são a anti-criação, encarniçada a degradar a obra divina; mas, basta o nome do Único pronunciado por santo Antão (Antônio), para que se transformem em pó essas obras-primas dos artífices do Maligno, efêmeras negação das divinas estruturas.
Vide: Le Déclin du Moyen Âge ↩
No conceito usado em fotografia: resultado de um calótipo. ↩
Vide: YVETTE CENTENO — Literatura e Alquimia — MAGIA E ALQUIMIA OU AS METAMORFOSES DO FAUSTO DE GOETHE. ↩
A figura representa uma porca vestida de freira a segurar um bico de pena, a enlaçar um homem nu a manter sobre seu joelho esquerdo o pacto do diabo para ser assinado, diante um elmo gigante de onde saem duas pernas, nota-se um estilete a sair de dentro do capacete a apontar um tinteiro dependurado para ser usado pela pena oferecida. Vide: Bosch-detail ↩