(…) O fato é que o Cosmos, a região astral com todo o seu aparato de poderes, não será mais a totalidade do ser. Mesmo na cosmologia de Avicena, os Anjos ou Animae coelestes que movem as Esferas também são Estranhos que vieram para o “Ocidente Celestial”, assim como os Animae humanae são Estranhos exilados no “Ocidente Terrestre”. O reino da Luz começa além, onde termina o aparato do poder cósmico.
A partir de então, todo o edifício está aí para anunciar e denunciar o cativeiro do homem, para despertar nele a consciência de sua origem. A esplêndida cúpula se torna uma gaiola, uma prisão da qual devemos escapar. O limite cósmico das esferas celestes não é mais vivenciado como unificador de dentro para fora, mas como compressor de fora para dentro. Por baixo dessa leveza está a angústia de uma existência estrangeira, e o sentimento de ser um Estrangeiro é de fato o sentimento dominante em todo gnóstico, aquele que dá à sua consciência seu poder de exaltação. “Ali estava eu, único e solitário, um estranho para os outros habitantes da estalagem. Sohravardi, o “recitador” do Relato do Exílio Ocidental, será jogado em um poço escuro. O prisioneiro do Conto do Pássaro de Avicena proclamará sua angústia. O mesmo tema dominante: “estranhamento”, a sensação de não pertencer a este lugar, de ser um “forasteiro”. (CorbinAvicena:27-28)
Segundo Corbin, há entre os textos gnósticos e a concepção aviceniana de Oriente uma correlação no tocante ao “tempo hierofânico”. Essa noção corbiniana corresponde a uma participação comum na experiência vivida pelos gnósticos. O mito cosmogônico das gnoses não é uma interpretação “científica” do universo, com a consequente concepção racionalizante. O cosmo gnóstico anuncia um modo de compreender e interpretar o universo, exterior às percepções sensíveis: é o que o autor entende por interpretatio mundi. Situado no mundo que ele interpreta, orientado por essa interpretatio mundi, o gnóstico determina sua experiência individual do espaço cósmico.
O cosmo é experimentado como uma cripta na arquitetura cósmica: sobre a Terra está o céu, representado por uma cúpula que encerra o místico como numa prisão ao mesmo tempo que o protege. Não é por acaso que Avicena emprega a metáfora da gaiola na Narrativa do Pássaro — Rissalat at-Tayr, o texto seguinte a Hayy ibn Yaqzan na trilogia do “ciclo visionário”. O pássaro (a alma), prisioneiro na gaiola, foge e voa para o alto, conservando porém as algemas. O texto relata a jornada do pássaro para se livrar das amarras. (Rosalie Helena de Souza Pereira, AVICENA: A VIAGEM DA ALMA)