Evola Ignorância

Julius Evola — A DOUTRINA DO DESPERTAR

Ignorância
Como elemento base de toda a série é indicado avijja, quer dizer a ignorância, o não-saber. A significação deste termo, no budismo, não deve ser considerada diversamente, em sua essência, daquela que é própria a outras correntes da tradição hindu, por exemplo, ao Samkhya e ao Vedanta ele mesmo, nos quais poderia ser figurativamente clarificado, em dizendo: o homem é um deus que não sabe que é tal — é unicamente este não-saber (avijja) que o faz homem. Trata-se de um estado de «esquecimento», de falha, com base no qual se determina a potencialidade absolutamente primária da identificação do ser com uma ou outra forma de uma existência finita e condicionada, e portanto de um estado que compreende também uma disposição, uma tendência, um movimento virtual. Eis porque é ainda possível introduzir os conceitos de «cegueira», de «intoxicação», de «mania» — e, com efeito, vemos que, em certos textos, «ignorância» e «mania» se intercondicionam. Diz-se, por exemplo: «a origem da ignorância determina a origem da mania», e, ao mesmo tempo: «a origem da mania determina a origem da ignorância» — a mania sendo, aqui, considerada como tripartite, quer dizer enquanto «mania de desejo, mania de existência, mania de ignorância» — kamasana, bhavasana, avijjasana. Segundo K.E. Neumann e G. De Lorenzo, traduzimos por «mania» o termo asava, diversamente dos orientalista: por vezes, por «paixões» (Nyanatiloka), por vezes ainda por «tóxicos» — alimentos fatais, intoxicantes (Rhys Davids) ou por depravações (Warren), ou ainda por «drogas», «fermentos», até «estupefantes» — drugs (Woodward), ou ainda por «eflúvios», «emanações impuras», «supurações» — unreine Ausflüsse (Walleser), etc. O sentido literal é precisamente aquele de uma droga intoxicante, que penetra e altera inteiramente o ser com uma perturbação ou uma «mania». Logo deve-se pensar em um estado semelhante àquele da embriaguez, que faz esquecer e que, ao mesmo tempo, torna possível um ação irracional. A estreita relação de avijja — ignorância — com asava — a mania — se encontra confirmada, não somente pelo fato que, como se viu, a ignorância mesma é indicada à maneira de um asava — avijjasava — mas além do mais, pelo fato que o estado de despertar ou de iluminação — panna — constituindo o contrário daquele de ignorância, é frequentemente indicado como estando no ponto de surpreender, quando os asavas são neutralizados ou destruídos.

Aqui, convém dizer uma palavra do problema da medida segundo a qual a «ignorância» pode ser considerada como algo de absolutamente originário. A este respeito, diversas interpretações, segundo o ponto de referência, são possíveis. Em si, o ensinamento budista não remonta além de avijja. Quanto aos efeitos práticos, ascéticos, não é necessário ir além deste fato transcendental, desta crise misteriosa, esboçada pelos ensinamentos de muitas tradições com as formas mitificadas de uma «queda», de uma «descida», de uma «falta» ou de uma «alteração», similarmente originárias. Doutrinalmente, as coisas se apresentam todavia, de maneira diversa. Se se declara que «um limite anterior, pelo qual a ignorância não tem, em certa medida, existido, mas somente a partir do qual ela teve, ao contrário, existido, é impossível descobrir», uma tal ideia é reportada, não à série transcendental, mas melhor à série horizontal e temporal da existência samsarica, a respeito da qual é precisamente dito no mesmo texto: «O samsara não conduz em direção ao elemento livre-de-morte. E não pode estabelecer o ponto no qual começa a marcha dos seres, paralisados pela ignorância e entravados pela concupiscência». Ao contrário, querer fazer, como alguns, da ignorância um absoluto na ordem da «gênese condicionada», interpretada «verticalmente», seria um contra-senso: isto significaria, certamente, reivindicar para o budismo uma «originalidade», mas para o condenar a todas espécies de contradições e de incoerências. Poder-se-ia talvez conceber a concupiscência como algo dotado de primogenitura: mas não certamente a ignorância, a qual, já como tal, pressupõe um conhecimento. E falar de despertar não teria sentido, pois evidentemente não se desperta, se, a princípio, não se adormeceu e se não há algo que reluz além do nevoeiro do esquecimento. Enfim, a substância mesma da doutrina budista — quer dizer a ascese — se encontraria fundamentalmente prejudicada, porque não se conseguiria compreender de onde pôde jamais vir ao homem a força de resistir, de se desprender do samsara, de destruir, em percorrendo de novo inversamente, a concatenação inteira das nidanas e de apagar sem resíduo a mania, se a ignorância não significasse algo de sobrevindo, uma intoxicação, um obscurecimento e uma embriaguez, a qual, por profunda que seja, pressupõe sempre um estado antecedente, e não como tal, que possa irrevocavelmente paralisar todas as forças conexas a um tal estado. Com um tal ponto de vista, concorda o ensinamento budista, através do texto seguinte: «Há, ó discípulos, algo de não-nascido, de não-advindo, de não-composto, de não-criado. Se não houvesse algo de não-nascido, de não-advindo, de não-composto, de não-criado, não haveria uma via para ir além do nascido, do advindo, do composto, do criado. Mas posto que há algo de não-criado, de não-advindo, de não-composto, de não-criado, é assim possível uma liberação do nascido, do advindo, do composto, do criado.

O ponto de vista do comentário mais célebre dos textos é, de resto, que a ignorância é, mas, ao mesmo tempo, não é uma causa primeira, que «ela é o elemento principal mas não o princípio». Ela não é o princípio do ponto de vista da existência samsarica, a respeito do qual é precisamente dito que não há um tempo em que a ignorância não foi, esta existência tendo a ignorância e a concupiscência por dupla raiz e substrato co-essencial. Ela o é do ponto de vista superior, transcendental ou vertical, do qual parece que os asavas eles mesmo são condicionados pela ignorância e que é por uma tal via que conduzem a uma forma determinada de existência sobre o plano infra-humano, humano ou «divino». Sobre o plano samsarico, e logo segundo a interpretação temporal, a ignorância é em seguida propriamente explicada como aquele daquele que, uma vez descido no nascimento, não reconhece que a lei do mundo é dukkha, e que não vê a origem de seu estado, o meio de lhe escapar, nem a via da liberação: trata-se da ignorância das quatro verdades dos árias. Determinada pelos asavas, pela intoxicação, pela mania, esta ignorância especial confirma o estado samsarico da existência e constitui a base — upadhi — de sua prorrogação.



Julius Evola