O Olhar Luminoso
Faust (erblindet): Die Nacht scheint tiefer tief hereinzudringen, Allein im Innern léuchtet helles Licht…
Faust II, 115001
O Prefácio e a Introdução formam provavelmente a parte mais instigante da Doutrina das Cores, visto que contêm quase todas as questões discutidas posteriormente. Mas, apesar de extremamente sintéticos e de apresentarem argumentos que parecem de uma certeza inabalável, o autor acaba por confessar que o trabalho efetivo ainda nem começou. O texto se assemelha à Doutrina da Ciência de Fichte, que, a fim de ser compreendida no seu espírito, e não apenas na letra, pressupõe uma visão única: “Ela absolutamente não é objeto do saber, mas apenas forma do saber de todos os objetos possíveis. Não é de maneira nenhuma nosso objeto (Gegenstand), mas nosso instrumento, nossa mão, nosso pé, nosso olho; e aliás, nem sequer nosso olho, mas apenas a claridade do olho.”
Assim como a Wissenschaftslehre, a Farberdehre implica um ponto de vista único a partir do qual se constrói toda a obra. Daí o fato de a parte introdutória já conter, de certo modo, todo o resto. Goethe inicia o Prefácio pressupondo no leitor um conhecimento prévio da luz e de sua afinidade “eletiva” com a cor: “Quando se fala das cores, não se deve, em primeiro lugar, mencionar a luz? Pergunta bem natural, que responderemos de modo sucinto e direto, pois até agora se disse tanta coisa a respeito da luz que nos parece inconveniente repetir o que já foi dito, ou acrescentar algo àquilo que muitas vezes se repetiu.”
Essa afirmação, contudo, não parece se justificar se prosseguirmos com a leitura. Por que razão Goethe logo em seguida dedicará mais da metade do Prefácio a atacar justamente o que já havia sido dito a respeito da luz? Veremos mais adiante o que está por trás disso. O que importa aqui é ressaltar o fato de que a luz tem uma afinidade instantânea com a cor. No final da parte didática ele dirá que toda luz é cor, segundo condições determinadas (690).
Mas, afinal, o que possibilita essa vinculação mágica entre luz e cor? Já no terceiro parágrafo Goethe parece nos dar alguns indícios dessa relação misteriosa: “As cores são ações e paixões da luz. Nesse aspecto, podemos esperar delas alguma indicação sobre a luz. Na verdade, luz e cores se relacionam perfeitamente, embora devamos pensá-las como pertencendo à natureza como um todo: é ela inteira que assim quer se revelar ao sentido da visão.”
Goethe estava convencido de que a totalidade da natureza se revela, como que através de um espelho, ao sentido da visão. Se tanto luz quanto cor pertencem à natureza, que por sua vez se mostra particularmente na visão, é esta última, portanto, que contém a solução do enigma. De modo análogo à revolução copernicana de Kant, Goethe transfere o olhar divino de Plotino, até então simbolizado pela luz, para o interior da nossa visão. O olho se toma luminoso:
Se o olho não tivesse sol,
Como veríamos a luz?
Sem a força de Deus vivendo em nós Como o divino nos seduz?
Assim como, para Goethe, a sensibilidade não é somente receptividade, mas também impulsividade, assim também as cores devem ser interpretadas tanto como “paixão”
(Leiden), quanto como “ação” (Tat) da luz. É através de sua ação ou efeitos que podemos ter uma imagem ou uma história dos seus efeitos, que por sua vez nos aproxima da essência da própria cor. Por outro lado, torna-se fundamental traçar em que condições e limites ocorre a experiência do fenômeno cromático, a fim de garantir também legitimidade científica à análise. Nesse ponto, Goethe parece se aproximar da obra de Kant.
Nos ensaios sobre a ciência da natureza, nas conversas com Eckermann, assim como na correspondência, Goethe várias vezes ressalta o impacto da terceira crítica sobre sua forma de pensar, chegando a dizer que a descoberta dessa filosofia foi motivo de grande felicidade durante um período de sua vida. Segundo ele, a Crítica do Juízo teve o grande mérito de libertar a investigação sobre a natureza das “absurdas causas finais”. Nessa nova ótica, os seres vivos são interpretados como organismos independentes, deixando de ser produto da criação divina. A natureza é algo que parece ser construído por nossas mãos, por nossos olhos: ela existe somente quando se revela aos nossos sentidos. A natureza nada mais é do que um conjunto de leis estabelecidas pelo homem.
Como explica Lebrun : “As leis naturais são feitas e relacionadas umas com as outras como se a Faculdade de Julgar as houvesse produzido para o seu próprio uso.”
Segundo a Crítica do Juízo, natureza e arte devem ser pensadas de uma perspectiva análoga: o homem julga a natureza do mesmo modo que interpreta obras de arte. A natureza de certa forma é “estetizada”. Podemos imaginar a força dessas reflexões para um poeta que também investiga a natureza.
Entretanto, há uma divergência crucial em relação a Kant. Como mostra Simmel, para Coethe “o princípio vital da natureza é, ao mesmo tempo, o da própria alma humana, ambas tendo a mesma igualdade de direitos, mas procedentes da unidade do ser, que, na diversidade de suas configurações, desenvolve a igualdade do princípio criador, de sorte que o homem pode encontrar em seu próprio coração todo o segredo do ser, e talvez também a sua solução. Kant se abstém de formular semelhantes afirmações sobre as coisas mesmas, limitando-se a dizer delas o que resulta das condições em que chegam a ser conhecidas. Se um pode ser deduzido do outro, não é porque a natureza e a alma humana sejam homogêneas em virtude da sua essência, de sua substância, a não ser porque a natureza é uipa representação na alma humana.”
Para Goethe nada pode ser exterior a nós, o mundo se reflete no sujeito. Mas os próprios fenômenos objetivos também devem se manifestar nele. A discussão com Schopenhauer é bastante esclarecedora a esse respeito: “E quando Schopenhauer, num dos entretenimentos de 1813/14, explicava que o mundo sensível era nossa representação e que a luz não existiria se não a víssemos, Goethe olhou-o fixamente com seus grandes olhos jupiterianos e disse: “Não, o Sr. não existiria se a luz não o visse.” Isso mostra que Goethe, na verdade, não separa o homem do mundo. Quando nos diz que o olho é “solar”, significa que é o olho que deve sua existência à luz, e não o contrário: o olho constitui-se “na luz, e para a luz”.
Nesse aspecto, Goethe parece estar mais próximo de Fichte, apesar de lhe ter constantemente criticado o subjetivismo. É interessante comparar essa última observação sobre a luz com a Wissenschaftslehre de 1804, onde a luz não só está dentro de nós, como acaba se identificando com o próprio sujeito. Se para Fichte sujeito e objeto fazem parte de uma mesma construção do absoluto, a luz é a manifestação dessa unidade, uma vez que é a própria razão:
“Desde então, tal visão me habita em profundeza
E é no meu ser — eterna, unicamente;
Vive no meu viver, olha no meu olhar.”
Outro filósofo que segue o mesmo caminho é Schelling, que vê na luz “um grau determinado de figuração do infinito no finito”. Natureza e razão, sujeito e objeto, olho e sol ao interagirem (Wechsel — Tun und Leiden) formam uma totalidade harmônica.
É preciso ressaltar, contudo, que Goethe tem uma postura independente em relação à filosofia da época e, ao cobrarmos dele um rigor filosófico, correremos o risco de pôr a perder a especificidade de suas questões. Se o olhar luminoso, ou a claridade do olho, parece sempre evocar problemas filosóficos é porque de certa forma esse olhar envolve uma questão crucial da filosofia, que é a relação entre sujeito e objeto. Nosso intuito, aqui, foi analisá-lo segundo o vínculo “mágico” entre luz e cor. Cabe agora mostrar como esse tipo de interpretação, que implica um olhar luminoso para sintetizar a cor na luz, diverge profundamente da teoria física de Newton, que procura derivar a cor da luz.
[Excertos da apresentação de sua tradução da obra, “DOUTRINA DAS CORES”, por Marco Giannotti]