Goethe – Fausto e Helena

(Hadot2018)

“Então o espírito não olha nem para frente, nem para trás. Só o presente é nossa felicidade”. Quando, no Fausto II, o herói de Goethe pronuncia essas palavras, parece haver alcançado o ponto culminante de sua “busca da mais elevada existência”. A seu lado, no trono que fez erguerem para ela, está sentada Helena, aquela cuja beleza esplêndida ele entreviu no espelho da cozinha da feiticeira, aquela que, para entreter o Imperador, ele evocou no primeiro ato, após uma assustadora viagem ao reino das Mães, aquela por quem ele então se apaixonou perdidamente: “Será que ela penetra até o fundo de minha alma, a fonte da Beleza em jorros plenos espargidos? A ti consagro minha força, minha paixão inteira, a inclinação, o amor, a adoração, o delírio.” Foi essa Helena que ele buscou no segundo ato, por meio de todas as formas míticas da Grécia clássica; foi a seu respeito que ele conversou com o centauro Quíron, com a sibila Manto; é ela, enfim, que, no terceiro ato, veio se refugiar na fortaleza medieval – Mistra, talvez, no Peloponeso –, da qual Fausto aparece como senhor.

É a essa altura que se realiza o extraordinário encontro entre Fausto – que, embora apareça na forma de um cavaleiro da Idade Média, é, na realidade, a figura do homem moderno – e Helena, que, embora evocada com os traços da heroína da guerra de Troia, é, na realidade, a figura da Beleza antiga e, em última instância, da Beleza da Natureza. Com extraordinária maestria, Goethe soube dar vida a essas figuras, a esses símbolos, e assim o encontro entre Fausto e Helena é tão imbuído de emoção quanto o encontro entre dois amantes, tão impregnado de significação histórica quanto o encontro de duas épocas, tão permeado de metafísica quanto o encontro do homem com seu destino.

A escolha da forma poética serve muito habilmente para configurar a um só tempo o diálogo dos dois amantes e o encontro entre duas épocas históricas. Enquanto desde o início do terceiro ato o discurso de Helena era o da tragédia antiga e suas falas eram ritmadas pelo trimetro iâmbico, e o coro das cativas troianas lhe respondia em estrofes e antiestrofes, a partir do momento em que Helena encontra Fausto e ouve Linceu, a sentinela, se expressar em dísticos rimados, fica surpresa e encantada com essa forma poética desconhecida: “Tão logo uma palavra tocou o ouvido, lá vem outra acariciar a primeira.” E o nascimento do amor de Helena por Fausto se expressará precisamente em dísticos rimados, que Fausto inicia e Helena conclui a cada vez pela invenção da rima. Ao aprender essa nova forma poética, Helena aprende com Fausto a soletrar o abecedário do amor, como diz Mefistófeles. “Dize-ME como ME expressar tão lindamente”, começa Helena. “É muito fácil”, responde Fausto, “é preciso que brote do coração, e quando o peito transborda de desejo, voltamo-nos e procuramos “Quem compartilha nossa felicidade”, responde Helena. Fausto retoma: “Então o espírito não olha nem para frente nem para trás. Só o presente […]”.“É nossa felicidade”, responde Helena. E Fausto continua: “É o tesouro, o ganho supremo, a posse e a garantia. Mas a confirmação, quem a dá?” “Minha mão”, responde Helena. O dueto de amor se conclui provisoriamente na demonstração de entrega de Helena e o jogo de rimas se conclui, assim, numa “confirmação”, que é não apenas o eco da rima, mas também o dom da mão. Fausto e Helena então silenciam, abraçam-se silenciosamente enquanto o coro, adotando o tom do epitalâmio, descreve seu enlace.


O diálogo citado pode ser compreendido em vários níveis. É primeiramente o diálogo de dois amantes, semelhantes a todos os amantes. Fausto e Helena são dois amantes absorvidos pela presença viva do ser amado, esquecidos de tudo – passado, presente e futuro – fora essa presença. O excesso de felicidade lhes dá uma impressão de irrealidade, de sonho; o tempo e o lugar se desvanecem.

Num segundo nível de interpretação, porém, esse diálogo é o de Fausto e de Helena como figuras simbólicas: a do homem moderno em seu esforço sem-fim, e a da beleza antiga em sua presença apaziguadora, reunidos miraculosamente pela magia da poesia, que abole os séculos. Nesse diálogo, o homem moderno busca fazer com que Helena esqueça seu passado, a fim de que esteja inteira no instante presente, incompreensível para ela. Helena se sente tão distante e tão próxima, abandonada pela vida e, no entanto, renascente, vivendo em Fausto, mesclada a ele, confiante no desconhecido. E Fausto lhe pede que não reflita em seu estranho destino, mas aceite a nova existência que se oferece a ela. Nesse diálogo entre as duas figuras simbólicas, como bem notou Dorothea Lohmeyer, Helena se “moderniza”, por assim dizer, ao adotar a rima – símbolo da interioridade moderna – e ao duvidar, refletindo sobre seu destino; e Fausto se “antiquiza”; fala como homem antigo, quando convida Helena a concentrar sua atenção no instante presente e a não perdê-lo numa reflexão hesitante sobre o passado e o futuro.

Para Goethe, com efeito, essa era precisamente a característica tanto da vida quanto da arte antiga: saber viver no presente, conhecer o que ele denominava, como veremos,“a saúde do momento”. Nas palavras de Siegfried Morenz: “Essa natureza particular da Grécia, ninguém a caracterizou melhor do que Goethe […], por ocasião do diálogo entre Fausto e Helena, quando o alemão ensina a arte da rima à heroína grega: “‘Então o espírito não olha nem para frente, nem para trás. Só o presente é nossa felicidade.”

E, justamente, se Fausto se dirige a Helena como um homem antigo, é que a presença de Helena – isto é, a presença da beleza – lhe descortina a presença da Natureza: para Goethe, Antiguidade e Natureza caminham juntas; eis por que o diálogo entre Fausto e Helena pode ser compreendido num terceiro nível. O encontro com Helena é o encontro com a Beleza, o encontro com a presença da Natureza e também o encontro com a antiga sabedoria, com a antiga arte de viver. A Fausto, o niilista – que apostara com Mefistófeles que jamais diria ao instante: “Perdura! Tu és tão belo!” –, a antiga e nobre Helena (após a humilde Margarida) revela o esplendor do ser, isto é, do instante presente, e o convida a dizer sim ao instante, ao mundo e a ele próprio.

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