Goethe Metamorfose

Goethe — A METAMORFOSE DAS PLANTAS
Apresentação
Excertos da «Introdução» de Maria Filomena Molder, de sua tradução de “A Metamorfose das Plantas”

Deveras, se o livro (A Metamorfose das Plantas) não trouxesse na capa este título restrito, seriamos levados a acreditar que liamos a história do desenvolvimento do espírito humano em geral, a história da sua formação gradual, em vista da contemplação e da compreensão dos fenômenos da natureza. Geoffroy Saint-Hilaire, Compte Rendu des Séances de 1’Académie des Sciences, 1831

1. Há uma desilusão natural no momento da leitura de A Metamorfose das Plantas, própria de todas as expectativas que se geram na atmosfera do seu título, fórmula poética que tem ressonâncias nascidas em Teofrasto, Lucrécio e Ovídio e que se supõe pertencer a uma forma de pensamento marginal, esquecido, misterioso. Trata-se de um texto magro, cujo inacabamento é apontado em momentos decisivos, e que desde o início não enganou qualquer dos seus leitores convenientes, nem os homens de ciência, nem os filósofos. A recepção vai da indiferença à irritação, do acordo encomiástico ao reconhecimento de uma afinidade, à descoberta de um caminho comum, o que corresponde, por um lado (e evitamos qualquer referência às adesões fervorosas), a um abandono crítico, a uma suspensão deliberada de uma ciência das qualidades, e, por outro, a uma atenção deliberada daqueles que persistiram numa forma de saber, Cm que a teoria se constitui pela concentração nos pormenores concretos dos objectos, originando a reposição constante das relações entre visível e invisível, e em que se desenvolve a partir da intuição das imagens originárias, um método descritivo, que engloba a ideia de metamorfose (cada forma é formação) e a contemplação, requerida para dar conta dessa ideia, das passagens, dos anéis intermediários. Estes últimos dividem-se pelos campos da filosofia, da poética, da arte, da biologia, da antropologia, da teoria da linguagem1.

A observação da metamorfose não era nova, aliás, a originalidade é um valor fraco para Goethe, para quem a história do conhecimento humano repõe ciclicamente os próprios motivos do conhecimento, englobando os seus próprios alvos e correspondendo às solicitações próprias daquilo que é para ser conhecido. Para além de outras referências mais antigas, lembremos que Lineu dedicou um terço da sua Philosophia botanica à «Metamorphosis vegetabilis». Nova é a perspectiva de Goethe, recuperando modos de pensar que estavam em vias de desaparecimento na sua própria época: a procura de a priori morfológicos, a admissão de um princípio enteléquico.

A morfologia goethiana é um caso particular do estudo da natureza e, no que respeita quer à filosofia quer à ciência do seu tempo, um paradoxo. Não é filósofo, não quer ser filósofo e desenvolveu várias vezes o motivo da sua incapacidade em sê-lo: não tinha qualquer órgão para a filosofia ou nunca tinha pensado sobre o pensar. E, no entanto, estando todo o tempo a remar contra a maré no que respeita à ciência, que estabelecia então os seus foros de cidadania enquanto empirismo mecanicista, impondo-se por todo o lado com a felicidade da sua eficácia, não foram poucas as vezes em que se viu levado a pensar sobre o pensar e a descobrir órgãos inéditos e inesperados para essa função.

Geoffroy Saint-Hilaire conta-se entre os poucos homens de ciência que no seu tempo receberam favoravelmente a obra de Goethe, reconhecendo-se como um seu igual. O texto em exergo — sublinhe-se que A Metamorfose das Plantas, referida por Geoffroy, era o título de uma publicação, que abrangia não só o texto que o recebe de direito como também «O Autor Conta a História dos seus Estudos Botânicos», na edição de Soret de 1831 — integra-se numa recensão crítica mais alargada, onde se comenta a recepção desconfiada da obra, lida, e mal, por poucos. Isso deve-se, diz Geoffroy, a um erro do próprio Goethe, que fez sair precocemente a sua obra, que só poderia ser entendida um século mais tarde. E, todavia, se a obra passou a ser o centro de uma série de investigações da escola morfológica na Alemanha (Wilhelm Troll e Adolph Hansen) e Inglaterra (Agnes Arber), permaneceu à margem da ciência biológica dominante e da sua respectiva epistemologia2.

Encontramos uma excepção a este estado de coisas em Adolf Portmann, que empreendeu um caminho original em biologia (embriologia), ao acentuar o seu ingrediente metafísico, reclamando-se dos estudos goethianos, que representam para ele um antídoto contra o reducionismo avassalador que cresce na ciência natural. Aliás, todas as investigações biológicas de ordem morfológica obrigam a um relançamento de temas metafísicos, quer dizer, as questões relativas à forma, à formação, à visibilidade e invisibilidade da forma, ao crescimento, nascimento e morte das formas, estão na origem de todo o nosso pensamento, no sentido da tarefa de compreender a epifania diferenciada e unificável daquilo que há enquanto há. Mais recentemente ainda, René Thom e Jean Petitot levaram a cabo, a partir de um desenvolvimento inédito da matemática (teoria das catástrofes), um regresso a um conjunto decisivo de questões metafísicas, justamente pela reintrodução do estudo das formas e das suas qualidades inerentes.

Movendo-se numa tensão entre a actividade mais modesta da empírea, uma intensa e extensa actividade de observação, de colecção, de experimento pacientemente repetido, um amor pelos pormenores, e o anseio pela compreensão global, pela visão do todo, o projecto morfológico é difícil de classificar. É essa oscilação que lhe confere a sua originalidade, impedindo a sua integração em qualquer sistema epocal, quer seja o da Naturphilosophie, quer o da metafísica da natureza de Schelling. Como se irá ver, esta reunião afortunada, e que não deixou propriamente escola, não se identifica com uma resolução de superfície das questões que tecem o pensamento da forma: a forma é separada das formas?, a forma é ou as formas são? Não se trata em geral da redução indeterminada da multiplicidade à unidade, mas de, no terreno concreto das formas singulares, consideradas nos seus pormenores, não perder de vista a redução, ousando determiná-la de cada vez. Por isso essas questões recolocam-se, fazendo ressoar as mais antigas aporias. Além disso, o modo como elas se apresentam nem sempre é resgatado pela linguagem, porque o seu poder de distinção e de determinação, potenciado pelo esforço conceptual, põe à vista os seus próprios limites: sobre eles reflectiu Goethe continuamente. Indiscernível do próprio caminhar daquele que procura descrever as formas, um procedimento heurístico, há um compromisso, i. e., a tarefa de responder às dificuldade ínsitas a esse mesmo procedimento, o que implica, como iremos ver, a metamorfose daquele mesmo que responde.


  1. A título de exemplo, mencione-se uma passagem da obra de Claude Lévi-Strauss, que se pode considerar uma antecipação da herança estruturalista, em que A Metamorfose das Plantas é apresentada como «ma das imagens originárias dessa forma de pensamento:

    «O que precede (uma reflexão sobre as relações entre sensível e inteligível investigadas pelo estruturalismo) ajuda a compreender porque é que as especulações de Dürer nos seus Livros… dos retratos dos corpos humanos, as de Goethe em A Metamorfose das Plantas, retomadas e generalizadas por D’Arcy Wentworth Thompson, que lhes deu um estatuto científico, conservam ainda hoje a sua grandeza. O biólogo inglês mostrou que, fazendo variar os parâmetros de um espaço de coordenadas, se podia, por uma série de transposições contínuas, passar de uma forma viva a uma outra forma viva, e deduzir com a ajuda de uma função algébrica os contornos sensíveis — gostaríamos quase de dizer o grafismo insubstituível e o estilo — , que permitem distinguir pela sua forma, ao primeiro lance de olhos, duas ou mais espécies de folhas, de flores, de conchas ou de ossos, ou mesmo animais inteiros, desde que os seres comparados pertençam à mesma classe botânica ou zoológica.» Claude Lévi-Strauss, «Finale» a L’Homme Nu, Librairie Plon, Paris, 1971, PP. 604-605. 

  2. Na avaliação mais recente de A Metamorfose das Plantas feita por um homem de ciência é posta em relevo a originalidade de Goethe considerar as plantas no seu devir, uma visão dinâmica que se opunha ao modo estático de representar as plantas, como seres fixados, dominante na época. O autor sublinha igualmente o alcance das suas explicações fisiológicas para dar conta da progressiva depuração das folhas, a que foram acrescentados em textos posteriores a hipótese da existência de elementos activos, sob a influência da química nascente, bem como a concepção de uma pré-determinação das partes subsequentes nas partes anteriores da planta, e ainda a fundação do conceito de homologia (se bem que o termo seja posterior). Mas o ponto de vista goethiano é, salienta-o o autor, tipológico-concreto e não tem nada a haver com a concepção evolutiva das espécies, de onde procedem muitos mal-entendidos e suposições errôneas, como é o caso da Urpflanze.
    No entanto, e esta é a conclusão do texto, o perigo da actual botânica está em procurar um todo sem tomar em consideração os pormenores múltiplos, está em generalizar um aspecto isolado e em fazê-lo passar por uma visão do todo, o que é uma perda em amplitude, em largueza de vista, em mobilidade, em observação ingênua, aquilo que era precisamente decisivo para Goethe. Cf. Theodor Butterfass, «Goethe , «Goethe und die Wissenschaft von der Pflanzen», Allerhand Goethe. Seine wissenschaftliche Sendung aus Anlass des 150. Todestages und des 50. Namentages der Johann Wolfgang Goethe-Universität in Frankfurt am Main. Im Auftrag des Präsidenten hrsg. von Dieter Kimpel und Jorg Pompetzki, Verlag Peter Lang, Frankfurt Main, Bern, New York, 1985, PP. 165-180.
    É justamente o ponto de vista morfológico de Goethe, em que se inscreve a apresentação da Urpflanze, que vai ser objecto de análise nas páginas desta «Introdução».