VIDE: SABEDORIA DOS PROFETAS; DA SABEDORIA DIVINA NO VERBO ADÂMICO
RESUMO (a partir da apresentação do capítulo por R. W. J. Austin (AustinFusus))
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- Nomes divinos e a relação destes com a Essência divina
- Nomes servem para descrever modalidades infinitas e complexas da polaridade Deus-Cosmos
- Nome supremo, sendo o de Deus Ele mesmo, descreve a natureza geral e universal da relação Deus-Cosmos
- Essência (dhat) o que o divino ser é em Ele mesmo além de qualquer polaridade ou relacionamento com o Cosmos
- Não confundir Essência e Realidade; esta denota o Ser primordial e a Percepção eterna que une polaridade e não polaridade
- Os Nomes incluindo o Nome supremo só têm relevância no contexto da polaridade Divindade-Cosmos
- Adão representa este princípio que medeia e ao mesmo tempo resolve a experiência da polaridade
- Adão é a conexão vital sem a qual toda a ocorrência da consciência de Si mesmo não seria possível
- Relação entre Adão, símbolo da humanidade, e Deus
- Função de Adão no processo criativo
- Adão enquanto princípio de agência, transmissão e reflexão
- Adão enquanto a verdadeira razão para criação do cosmos
- Natureza dos anjos
- Relação entre pares de conceitos essenciais para compreensão do processo criativo
- universal-individual
- necessário-contingente
- exterior-interior
- luz-escuridão
- aprovação-raiva
Esse capítulo, como o título sugere, trata principalmente do relacionamento entre Adão, que aqui simboliza o arquétipo da humanidade, e Deus. Mais especificamente, ele trata da função de Adão no processo criativo, como o princípio de agência, transmissão, reflexão e, de fato, como a própria razão para a criação do Cosmos. O capítulo também discute a natureza dos anjos e a relação entre pares de conceitos essenciais para a compreensão do processo criativo, como universal-individual, necessário-contingente, primeiro-último, exterior-interior, luz-escuridão e aprovação-perigo.
Ibn Arabi abre o capítulo, entretanto, com o tema dos Nomes divinos e sua relação com a Essência divina. Com o termo “Nomes”, ele se refere aos Nomes de Deus, sendo o Nome Alá o Nome supremo. Esses Nomes servem, essencialmente, para descrever as modalidades infinitas e complexas da polaridade Deus-Cosmos. O próprio Nome supremo, como sendo o do próprio Deus, descreve claramente a natureza geral e universal dessa relação, ou seja, que é Deus quem é o real, o autossuficiente, enquanto o Cosmos é, essencialmente, irreal e completamente dependente. Com o termo “Essência” (dhat), ele quer dizer o que o ser divino é em si mesmo, além de qualquer polaridade ou relacionamento com um cosmos. Esse termo não deve ser confundido com “a Realidade”, que denota antes o Ser primordial e a Percepção eterna que une tanto a polaridade quanto a não polaridade. Assim, os Nomes, incluindo o Nome supremo, têm relevância ou significado somente dentro do contexto da polaridade Divindade-Cosmos, e Adão representa precisamente aquele princípio que, ao mesmo tempo, medeia e resolve toda a experiência dessa polaridade, sendo aquele elo vital sem o qual toda a ocorrência da autoconsciência divina não seria possível.
Ibn Arabi continua a ilustrar essa função adâmica com uma de suas imagens favoritas, a do espelho, por meio da qual ele procura explicar o mistério do reflexo da realidade no espelho da ilusão. “O Nessa imagem sutil há dois elementos, o próprio espelho e o sujeito observador que vê sua própria imagem refletida no espelho como objeto. Adão, sendo o fator de ligação no processo de reflexão e reconhecimento da reflexão, representa tanto o espelho quanto o sujeito observador, sendo o próprio espelho um símbolo da receptividade e da refletividade da natureza cósmica, e o sujeito observador o próprio Deus. Assim, Adão é descrito por Ibn Arabi como “o próprio princípio da reflexão” e o “espírito da forma (refletida)”. No entanto, Ibn Arabi não estava pensando nos espelhos de vidro especialmente revestidos de nossos dias, mas sim no espelho de metal altamente polido de sua época. Esses espelhos serviam para ilustrar melhor os problemas metafísicos com os quais ele estava lidando. Para começar, esses espelhos precisavam ser mantidos polidos a fim de preservar suas qualidades reflexivas e, além disso, era necessária uma grande habilidade do artesão para criar uma superfície perfeitamente plana. Portanto, com esse tipo de espelho, sempre havia a possibilidade de deterioração e distorção da superfície. Assim, desde que o espelho estivesse perfeitamente polido e plano, o sujeito observador poderia ver sua própria forma ou imagem perfeitamente refletida em sua superfície e, nesse caso, a alteridade do próprio espelho seria reduzida a um mínimo na consciência observadora ou até mesmo apagada completamente. No entanto, na medida em que o espelho reflete uma imagem embaçada ou distorcida, ele manifesta sua própria alteridade e diminui a identidade da imagem e do sujeito. De fato, a imagem distorcida e imperfeita apresenta algo estranho ao sujeito, que então pode se envolver em esforços para melhorar e aperfeiçoar o espelho, de modo que possa alcançar uma autoconsciência mais perfeita. Assim, temos no espelho um símbolo muito adequado da polaridade divino-cósmica. Em um extremo da relação, a Natureza cósmica ameaça absorver e assimilar o sujeito na infinidade e complexidade de seu impulso criativo, enquanto, no outro, o Sujeito divino parece aniquilar a Natureza na reafirmação da identidade, cada um sendo, ao mesmo tempo, outro e não outro.
Adão, como o arquétipo da humanidade, é, portanto, em sua natureza essencial, ao mesmo tempo o meio de visão pelo qual o Sujeito observador contempla Sua própria imagem ou reflexo cósmico e o meio de reflexão pelo qual o “outro” cósmico é restaurado a Si mesmo. Como médium, portanto, é Adão que é o próprio princípio da relação polar e que, como tal, conhece os Nomes de Deus, que o Alcorão ordena que ele ensine aos anjos.
O tema do estado angelical sempre foi problemático para a teologia. Para Ibn Arabi, os anjos parecem ter sido particularizações do poder divino, seja ele criativo ou recreativo, seres que, embora próximos da presença divina, não tinham participação na realidade física e formal da criação cósmica. Assim, eles são seres puramente espirituais, bem diferentes do ser bipolar e sintético Adâmico que, dentre toda a criação, é o único que participa da autoconsciência da Realidade. Da mesma forma, a criação animal, como particularização da vida puramente cósmica, está fora da experiência exclusivamente sintética do estado humano.
Outra imagem que Ibn Arabi emprega nesse capítulo, e que é particularmente apropriada para esta obra, é a do anel com sinete. Nessa imagem, o homem é visto como o selo que sela e protege o tesouro cósmico de Deus e no qual está estampado o sinete de seu Proprietário. Assim, Adão, como homem, é a cera receptiva que carrega a imagem do abrangente e supremo Nome de Deus, cuja rompimento significa o fim de todo o devir cósmico.
No entanto, como foi apontado acima, embora insista principalmente na supremacia eterna do polo cognitivo e volitivo, Ibn Arabi sempre retorna, como neste capítulo, à mutualidade subjacente da experiência polar, de acordo com o conceito fundamental da Unidade do Ser. Assim, como ele aponta aqui, o termo “origem” não tem sentido sem assumir a existência do que é “originado”, e assim por diante com todos os conceitos polares, incluindo os termos “Deus” e “Senhor”, que são significativos apenas se os termos correspondentes “adorador” e “escravo” estiverem implícitos.
De acordo com essa premissa básica do pensamento de Ibn Arabi, não é surpreendente descobrir que sua noção de Diabo ou Satanás é um pouco diferente da teologia comum. De fato, ele vê o princípio diabólico de duas maneiras. Primeiro, para ele, é o princípio que resiste ao impulso autorrealizável de criar o objeto propriamente outro e insiste no direito exclusivo do espírito puro e da transcendência, sendo essa a razão da recusa de Satanás em obedecer à ordem de Deus de se prostrar diante de Adão, por ciúme da integridade do espírito puro. Em segundo lugar, é também o princípio que insiste na realidade separada da vida e da substância cósmica e que nega toda a primazia ao Espírito. Em outras palavras, é aquele princípio que procuraria insistir na realidade separada de qualquer um dos polos, às custas do outro, e assim prejudicar a totalidade original da experiência divina como a Realidade, tentando cortar o elo importantíssimo entre o “próprio” e o “outro” e remetendo cada um deles ao isolamento mutuamente exclusivo do absurdo. (AustinFusus)