Ibn Arabi (SP) – Da sabedoria da inspiração divina no verbo de Seth

IBN ARABISABEDORIA DOS PROFETAS

Da sabedoria da inspiração divina no verbo de Seth (versão em parágrafos, com anotações)

Saiba que os dons e os favores (de Deus), que se prodigalizam neste mundo por intermédio das criaturas ou sem sua intermediação, se distinguem, para os homens de gosto espiritual (adh-dhawq), em dons essenciais (como o Conhecimento imediato) e em dons que decorrem dos Nomes divinos (quer dizer dos aspectos divinos tais como a Beleza, a Bondade, a Vida, etc.). Por outro lado, eles diferem segundo sejam recebidos em sequencia a uma demanda determinada, ou que correspondam a demandas não determinadas, ou ainda que tenham recebido sem nenhuma demanda, e isto independentemente de sua distinção em dons essenciais e dons conformes aos Nomes divinos. Há demanda determinada se alguém diz: “Ó senhor, dê-me tal e tal coisa”, e se ela apenas visa esta coisa. Uma demanda não-determinada, ao contrário, é aquela de um homem que ora: “Ó Senhor, dê-me aquilo que é para meu bem, em todas as partes, sutis e corporais, de meu ser”, sem que vise uma coisas particular.

Quanto aqueles que demandam, eles se dividem em dois grupos: uns obedecendo a impulsão natural de apressar a obtenção (de uma coisa desejada), — pois “o homem foi criado apressado” (Corão, XVII, 12) — e os outros demandando porque sabem que há junto a Deus coisas que, segundo a Pré-ciência divina, só podem ser alcançadas em virtude de uma demanda; eles se dizem então: “Talvez aquilo que demando a Deus seja desta espécie”. Sua demanda toma em conta, de uma maneira global, modos possíveis da Ordem divina; eles não sabem aquilo que a Ciência divina implica, nem aquilo que resulta de sua pré-disposição (isti’dâd) a receber; pois é uma coisa das mais difíceis de conhecer a predisposição de um ser em cada instante singular (de sua vida); por conseguinte, se ele não estivesse predisposto a tal demanda, ela não demandaria. Quanto aos contemplativos que não conhecem sua predisposição, eles a reconhecem, no melhor dos casos, no instante mesmo que vivem; pois por seu estado de presença (hudûr) (com Deus) sabem que eles só o recebem em razão de sua predisposição. Eles se dividem, por sua vez, em duas categorias: uns conhecem sua predisposição por aquilo que receberam; outros sabem aquilo que receberão em razão de sua predisposição; e é este último conhecimento que é o mais perfeito no interior deste grupo.

Faz parte dessa categoria aquele que demanda, não para acelerar a obtenção de um dom, nem para se dar conta de modos possíveis (do favor divino), mas para conformar-se à ordem divina, expressa pela Palavra: “Demandei-Me e Eu vos responderei!” É o adorador (al-abd) por excelência; quando ele demanda, seu desejo não se prende à coisa demandada, seja ela determinada ou não, mas visa apenas a conformidade à ordem de seu Senhor. Quando seu estado espiritual exige o abandono e a tranquilidade, ele se cala; assim, Jó e outros foram provados e não demandaram a Deus de os aliviar em sua prova, até o ponto que seu estado espiritual exigia, em um momento dado, que eles demandassem que esta prova lhe fosse removida; então eles demandaram e Deus os aliviou.

Que o atendimento de uma demanda seja imediato ou que ele seja deferido, isto decorre de sua medida (qadr) predestinada por Deus; se a demanda é feita no momento predestinado à resposta, esta é imediata, e se o atendimento é previsto para um tempo ulterior, seja neste mundo aqui seja no além, a resposta será adiada; entendo o atendimento efetivo da demanda, não a resposta divina: “Eu estou presente” (que é sempre imediata); compreenda-me bem!

No tocante à segunda categoria de dons, dos quais dissemos que são recebidos sem demanda, é necessário precisar que entendemos por demanda a prece enunciada em palavras; pois em princípio aí deve sempre ter uma demanda, seja ela articulada, seja ela consistindo em um estado espiritual (hal) ou seja ela resultante simplesmente da predisposição (íntima) do ser. Da mesma maneira, louvar Deus significa, rigorosamente, pronunciar uma louvação a Seu respeito; mas no sentido espiritual, esta louvação é necessariamente determinada por um estado espiritual, pois aquilo que te incita a louvar Deus é (o assentimento) de um Nome divino, exprimindo uma atividade de Deus ou um aspecto de Sua transcendência. Quanto à predisposição, o ser individual não é disto consciente; aquilo que ressente, é o estado (al-hal), pois conhece aquilo que o incita (à louvação ou à demanda); a predisposição resta a coisa mais escondida.

Aquilo que impede alguns de demandar, é saber que Deus decidiu seu destino por toda eternidade; eles prepararam suas moradas (quer dizer suas almas) para acolher aquilo que descerá Dele, e eles dispuseram-se de seus egos e de suas existências individuais. Entre esses, há aquele que sabe que a Ciência que Deus tem dele, em cada um de seus estados, se identifica àquilo que ele é ele-mesmo em seus estados de imutabilidade (primordial) antes de sua manifestação; e ele sabe que Deus não lhe dará qualquer coisa que não resulte desta essência (al-ayn), que ele é ele-mesmo em seus estados de permanência primordial. Ele sabe portanto de onde resulta o Conhecimento divino a seu respeito. Nenhuma categoria de conhecedores de Deus não é superior àquela dos homens que assim realizam o mistério da predisposição. Eles se dividem por sua vez em dois grupos: aqueles que conhecem isto de uma maneira global, outros de uma maneira distinta; os segundos ocupam uma colocação superior; pois aquele que tem um conhecimento distinto daquilo do qual se trata reconhece isto que o Conhecimento divino implica a seu respeito, seja que Ele lhe desvela diretamente sua essência imutável (al-ayn ath-thâbitah) e o desenrolar sem fim dos estados que dela derivam. É este último conhecedor que ocupa a colocação superior, pois no conhecimento dele-mesmo adota o ponto de vista divino, o objeto de seu conhecimento sendo o mesmo (que o objeto do Conhecimento divino). No entanto, quando considera-se esta identificação (do conhecimento do contemplativo ao Conhecimento divino) do lado individual, ela apresenta-se como um ajuda divina predestinada a este indivíduo em virtude de um certo conteúdo de sua essência imutável, conteúdo que este ser reconhecerá do momento que Deus lhe fará ver; pois, quando Deus lhe mostra os conteúdos de sua essência imutável, que, ela, recebe diretamente o Ser, isto vai além evidentemente das faculdades da criatura como tal; pois ela é incapaz de apropriar o Conhecimento divino que aplica-se a estes arquétipos (al-ayn aththâbitah) em seu estado de não-existência (udum), estes arquétipos sendo apenas puras relações essenciais (nisab dhâtiyah) sem formas próprias. É sob esta relação (quer dizer, em razão da incomensurabilidade do Conhecimento divino e do conhecimento individual) que dizemos desta identificação (ao Conhecimento divino) que ela representa uma ajuda divina predestinada a tal indivíduo.

É sob a mesma relação que se deve compreender a palavra divina: “(Nós os experimentaremos) até que Nós saibamos…” (Corão, XLVII, 31), (como se Deu não soubesse de antemão aquilo que farão as criaturas) o que é uma expressão rigorosamente adequada, contrariamente àquilo que pensam aqueles que não bebem desta fonte; pois a transcendência de Deus se afirma o mais perfeitamente pelo fato que o Conhecimento parece temporal por sua relação (a algo de temporal, da mesma forma que se afirma eterno na sua conexão com um objeto eterno). É o aspecto mais universal que um teólogo poderia logicamente conceber nesta matéria, a menos que considere a Ciência divina como distinta da Essência e atribua a relatividade à Ciência enquanto ela difere da Essência. Por (esta última perspectiva), se distingue aliás do verdadeiro conhecedor de Deus, dotado de intuição (kashf) e realizando o Ser (al-wujûd).

Mas voltemos agora à distinção dos dons (divinos) em dons essenciais e em dons conformes aos Nomes. Para aquilo que é dos favores e dons essenciais, eles só são concedidos em virtude de uma revelação (ou irradiação: tajalli) divina; ou, a Essência só se revela sob a “forma” da predisposição do indivíduo que recebe esta revelação; e jamais não se produz outra coisa. Portanto, o sujeito recebendo a revelação essencial verá apenas sua própria “forma” no espelho de Deus; ele não verá Deus — é impossível que ele O veja -, sabendo de certo que ele só vê sua “forma” devido a este espelho divino. Isto é totalmente análogo aquilo que tem lugar em um espelho corporal: aí contemplando formas, não vês o espelho, sabendo de certo que só vês estas formas — ou tua própria forma — em virtude do espelho (Testemunha). Este fenômeno, Deus o manifestou como símbolo particularmente apropriado a Sua revelação essencial, para que aquele a quem Ele Se revela saiba que ele não O vê; não existe símbolo mais direto e mais conforme à contemplação e à revelação da qual se trata (Paredro). Tente portanto tu mesmo ver o corpo do espelho ao mesmo tempo que olhas a forma que aí se reflete; não o verás jamais ao mesmo tempo. Isto é tão verdadeiro que alguns, observando esta lei das formas refletidas nos espelhos (corporais ou espirituais), pretenderam que a forma refletida se interpõe entre a vista do contemplante e o espelho mesmo; isto é o que alcançaram de mais alto no domínio do conhecimento espiritual; mas em realidade a coisa é tal como dissemos, (a saber que a forma refletida não oculta essencialmente o espelho, mas que este a manifesta). De resto, já temos explicado este ponto em nosso livro das “Revelações de Meca” (al-Futuhat al Makkiyah). Se saboreares aquilo, saboreias o extremo limite que a criatura como tal possa atingir (em seu conhecimento “objetivo”); não aspire portanto além e não canse tua alma para ir além deste grau, pois não há lá, em princípio e em definitivo, que pura não existência (a Essência sendo não manifestada).

SEGUE: SELO DOS ENVIADOS; CIÊNCIA DE SETH

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