Izutsu (UECP) – Criação Perpétua

IZUTSU, Toshihiko. Unicité de l’Existence et Création Perpétuelle. Paris: Deux Océans, 1980

O conceito de criação perpétua em mística islâmica e no zen budismo
Este artigo está baseado sobre duas conferências que fiz na Universidade de Teerã, Irã, dias 20 e 24 de maio de 1972. Aproveito esta ocasião para exprimir minha profunda gratidão ao professor Seyyed Hossein Nasr que me deu esta oportunidade. (Trad. Antonio Carneiro)

O que nos propomos estudar aqui, é a estrutura do conceito de «criação perpétua» que foi desenvolvida no sufismo em torno da expressão corânica “khalq jadîd”, literalmente «nova criação», que se encontra no Corão na surata 50, 15:

Bal hum fî labsîn minkhalqin jadîd. Não !… Não!… Entretanto, duvidam de uma nova criação!

Não é necessário dizer que, nesse contexto, «nova criação» se refere à ressurreição dos corpos no Dia do Julgamento. Os incrédulos «duvidam» porque têm dificuldade em crer que após se tornarem ossos e cinzas após a morte, possam novamente serem recriados em suas formas humanas originais. Tal é em resumo o sentido literal, ou exotérico (zâhinî), de “khalq jadîd” no contexto corânico.

No Irfân (isto é a filosofia mística do Islã) encontra-se, entretanto, uma interpretação completamente diferente desta mesma expressão : a interpretação dita «interior» ou «esotérica» (bâtinî), à luz da qual «nova criação» adquire uma significação toda nova; torna-se um conceito totalmente diferente, indicando um aspecto importante da experiência mística ou da consciência mística. É esse sentido “irfânico” particular da «nova criação» que vamos analisar. Como poder-se-á claramente dar-se conta, seria mais apropriado traduzir a expressão corânica “khakq jadîd”, no tipo de contexto esotérico que nos interessa, por «criação sempre nova» mais que por «nova criação» ou por « criação perpétua».

Mas, mais que continuar tão logo a análise da noção de «criação perpétua» tal como os filósofos místicos do Islã a compreendem, vamos de início estudar uma noção similar, um caso rigorosamente idêntico que pode-se encontrar no Japão no Budismo zen, particularmente no pensamento metafísico de um de seus representantes mais eminentes, Mestre Dogen. Vamos tomar um caminho desviado, não somente fazendo uma exposição de filosofia comparada, mas também e de início de modo à mostrar a universalidade da noção de «criação perpétua» no misticismo, graças à um exemplo concreto (pouco importa a religião à qual pertençam) ; e também para mostrar que em um tal contexto a «criação perpétua», longe de ser o produto de uma caminhada filosófica ou de uma elaboração intelectual, é uma visão viva, uma noção de experiência refletindo diretamente um dos aspectos mais fundamentais da consciência mística.

No Budismo de Dogen, a « criação perpétua » se apresenta naquilo que ele fala sobre o AGORA, o momento instantâneo. O tempo é o ser (lembra Heidegger). Logo uma unidade de tempo é uma unidade de existência. A mais ínfima fração do tempo, o instante, deve ser considerada como um instante ontológico. Tudo que chamamos uma coisa não é senão uma série de tais instantes ontológicos. Neste sentido, nada permanece, até mesmo dois instantes. A cada instante a coisa é nova. Uma coisa em tal instante, por exemplo, está completamente « cortada » do que ela era o instante precedente e que será o instante depois.

Há, por outro lado, uma dimensão de ser-tempo completamente diferente, da qual se faz a experiência na prática da contemplação zen enquanto meu « Presente intemporal ». Nesta dimensão se vê simultaneamente todas as coisas, posto que todas as diferenças que podem existir entre elas em termos temporais desapareceram completamente, pois cada instante ontológico particular é aqui uma atualização de todos os outros.

Compreendido desta maneira, conceito de tempo-intemporalidade de Dogen tem seu equivalente no Islame no pensamento de Ayn al-Qudat al-Hamadani.

Segundo a ótica de Hamadani, as coisas que coexistem juntas no « domínio além da razão » em uma extensão de existência intemporal, eternamente calmas e imóveis, se põem a aparecer subitamente em um estado de fluxo incessante, desde o instante em que transferimos ou projetamos suas imagens na cena do « domínio da razão e da sensação ». Nesta dimensão de desenvolvimento e de sucessão temporais, vê-se tudo mexer e mudar sem cessar. Hamadani diz que isso se deve ao fato que, na dimensão ontológica onde reina o Tempo, a relação (nisbah) de cada coisa com a Fonte de sua existência muda constantemente. A cada instante a relação é diferente do que era em outros instantes. Uma só e mesma relação ontológica não dura jamais nem mesmo dois instantes sucessivos. E isso implica imediatamente, para Hamadani, que cada coisa recebe a cada instante uma nova existência.

Hamadani explica esta situação comparando-a à maneira como a terra é iluminada pela luz do sol.

« A luz do sol não pode iluminar a terra senão porque se estabelece uma relação particular entre a terra e o sol. Se esta relação vier a desaparecer, mesmo a capacidade da terra para receber a luz do sol seria extinta instantaneamente. Não é senão na medida que que esta relação subsiste entre os dois que a receptividade da terra à luz do sol permanece efetiva. »

Segundo Hamadani, no entanto, é ilusório crer na permanência de uma só e mesma relação, pois a cada momento se estabelece uma nova relação entre a terra e o sol. Mas posto que as relações sucessivas que se estabelecem em instantes sucessivos são de tal modo semelhantes, aquele cujo « espírito é fraco » e que tem « vista curta », quer dizer aquele cuja visão se limita ao « domínio da razão (e da sensação) », imagina naturalmente que a luz do sol que ilumina a terra neste instante é exatamente a mesma luz que aquela que iluminava um instante mais cedo ou que a iluminará um instante mais tarde.

Hamadani prossegue afirmando que a relação a cada instante é única, que ela é particular a este instante mesmo. E isso se aplica a tudo sem exceção, quer dizer que cada coisa tira sua existência da Fonte última da existência pela força de uma relação atualizada entre elas duas; mas esta relação ontológica deve ser renovada e reestabelecida a cada instante se a coisa deve continuar a existir mais de um instante.

Com efeito, tudo que existe (mawjud) é em si, segundo Hamadani, algo de não-existente (madum). A « luz da existência » (nur al-wujud) (v. wujud) não pode esclarecer um não-existente senão com base em uma certa relação que se estabelece entre ele e a fonte última da existência. E esta relação existencial difere a cada instante completamente daquela que a precedia e daquela que seguirá. Em outros termos o mundo inteiro continua a ser novamente criado de instante em instante.

Toshihiko Izutsu (1914-1993)