TOSHIHIKO IZUTSU — UNIDADE DA EXISTÊNCIA E CRIAÇÃO PERPÉTUA EM MÍSTICA ISLÂMICA
Coletânea de ensaios, alguns resultados de apresentações em Conferências, escritos por este que foi um dos grandes discípulos de Henry Corbin.
A estrutura de base do pensamento metafísico no Islã
É ao grande místico árabe da Espanha dos séculos XII e XIII, Ibn Arabi, que se deve o conceito de “unicidade da existência”. Sua influência sobre os pensadores árabes foi considerável, sobretudo no Irã, com Sadr al-Din Shirazi, mais conhecido como Molla Sadra, nos séculos XVI e XVII.
A questão fundamental era então a “realidade” da existência. A existência, wujud, é o termo chave. Para entendê-la é preciso resgatar a posição de Avicena sobre sua tese da “acidentalidade da existência”. Esta tese celebre foi atribuída à Avicena por Averroes, no século XII, em seguida por Tomas de Aquino, acompanhando Averroes. Hoje em dia se constata uma incompreensão de ambos no que a atribuíram a Avicena.
O conceito de “existência” (wujud), herdado da filosofia grega pela islâmica, foi o problema maior ao qual os pensadores islâmicos se voltaram desde Farabi, primeiro a levantar o problema antes de Avicena, apresentando-o de forma singular, dizendo que a existência é um acidente (arad) da quididade (mahiyah).
Para entender a questão Izutsu a apresenta assim: empregamos na conversa proposições cujo sujeito é um nome substantivo e o predicado um adjetivo: “A mesa é branca”. Podemos facilmente transformar uma proposição existencial como “a mesa é”, em “a mesa é existente”. Assim transformada a “existência” nada mais é que um adjetivo denotando uma qualidade da mesa, e a proposição “a mesa é existente” vai junto com a proposição “a mesa é branca”, pois nos dois casos o sujeito é um nome denotando uma substância denominada “mesa”, enquanto que o predicado é um adjetivo que indica gramaticalmente uma propriedade ou um acidente da substância.
Neste nível somente que Avicena fala da existência como de um “acidente” da essência. É ao nível da análise lógica ou gramatical da realidade que afirmar a acidentalidade da existência tem um sentido. Isto não foi assim compreendido por Averroes e Tomás de Aquino, entendendo que a existência era além do nível lógico ou gramatical, uma propriedade inerente à substância, na própria estrutura da realidade objetiva, exterior.
Este modo de entendimento leva a absurdos, como por exemplo a mesa deve existir antes de poder se tornar branca. Avicena tinha isto em conta pois insistia que não se devia confundir a “existência” como acidente com os acidentes ordinários, como “branco”. Afirmava que a existência é uma espécie particular e única de acidente, pois a realidade objetiva a qual se refere uma proposição como “a mesa é existente”, oferece uma imagem completamente diferente do que é sugerido pela forma gramatical da expressão. Avicena no entanto não esclareceu nada sobre a estrutura da realidade objetiva, extra-mental que se encontra além do que é significado pela proposição lógica. O problema foi legado à posteridade.
Os filósofos da escola de pensamento que Izutsu vai apresentar adotaram uma posição que poderia parecer a primeira vista audaciosa ou até bizarra. Eles sustentam que, no domínio da realidade exterior, a proposição “a mesa é existente” compreendida no sentido de relação acidente-substância se torna absurda, pois no domínio da realidade exterior não há para começar nenhuma substância denominada mesa que subsiste em si, nem acidente real denominado existência que se torne inerente à substância. O conjunto do fenômeno mesa qualificado pela “existência” se transforma em algo que não é completamente ilusório, mas cuja natureza é próxima da ilusão como um “sombra chinesa”.
Esses filósofos não dizem que o mundo que percebemos é irreal em si ou que é um sonho, nem que a proposição “a mesa é existente” não se relaciona a nenhuma realidade correspondente. Eles insistem em que a estrutura da realidade exterior correspondente a esta proposição difere totalmente do que é normalmente sugerido pela forma desta proposição. Neste domínio a “existência” é a única realidade. A “mesa”nada mais é que uma modificação interna desta realidade, uma de suas determinações. Assim no domínio da realidade exterior, deve-se trocar o sujeito pelo predicado, a “mesa”, sujeito gramatical ou lógico da proposição “a mesa é existente”, não é neste domínio um sujeito, mas um predicado. O sujeito real é a existência, enquanto a mesa só é um acidente determinando o sujeito em um objeto particular. De fato todas as chamadas “essências” como o-fato-de-ser-uma-mesa, nada mais são na realidade exterior que acidentes que modificam e delimitam em uma multitude de coisas uma só e única realidade, denominada “existência.
Enquanto a consciência humana permanece ao nível da experiência cotidiana, ela não pode ter uma tal visão da realidade. Para aí acceder o espírito deve sofrer uma transformação total. A consciência deve transcender a dimensão da consciência ordinária na qual o mundo do ser é apreendido como constituído de coisas sólidas e subsistentes, cada uma tendo por base ontológica o que se denomina a essência. Deve surgir no espírito uma espécie de consciência totalmente diferente na qual o mundo revela-se diferente, uma espécie de virada mística, onde Molla Sadra declara que uma filosofia que não se baseia na visão mística da realidade nada mais é que um vão jogo intelectual. Em termos mais concretos, a ideia de base é que uma visão metafísica integral do mundo só possível sobre a base de uma forma única de relação sujeito-objeto.