… (A) reflexão sobre o Grande Mistério nos levou a identificar uma fase… uma fase essencial, quase poderíamos ser tentados a dizer, da vida divina: Deus, tendo intuído a si mesmo, define a si mesmo. E Deus definindo a si mesmo é precisamente o que Boehme chama de “Verbo eternamente falante”. O Verbo é o Uno, o Bem, o Deus que é ao mesmo tempo “Tudo e Nada”, que se expressa. Deus quer a si mesmo, como vimos. O Verbo é a tradução da vontade divina, livre e inseparável do amor, da alegria e da sabedoria. O Verbo é como o fogo no qual “aparece a vontade eterna que não tem fundamento, uma vontade diante da qual nenhum ser poderia resistir, pois ela engole tudo em seu Nada” (Mysterium Magnum, IV, 11). Vamos tentar não perder o fio da dialética de Boehme aqui. Deus, como Totalidade, engole tudo em seu próprio Nada. Em outras palavras, o “Algo”, na medida em que não é a Totalidade, não pode subsistir no mesmo plano que a Totalidade. Caso contrário, se oporia à Totalidade, que, por definição, é excluída. Nada pode, portanto, ser oposto à Totalidade, que, sendo, de certa forma, nada que não seja ela, aparece como puro Nada, purum Nihil, que Boehme designou pela palavra Ungrund: o abismo sem fundo da Totalidade inesgotável. Para o nosso místico, a Totalidade é. É o “Deus oculto”. É o Nada que existe, mas não sabe. É o Nada do qual sua riqueza imensurável escapa. É o Nada porque não é o Ser, o Algo. E, no entanto, é: é o Espírito imanifesto, o princípio supremo de todas as coisas — que, no entanto, não é nenhuma delas. “Percebemos que Deus, em seu próprio ser, não é um ser, mas apenas a força ou a inteligência que busca ser, uma vontade eterna sem fundamento, na qual tudo retribui, e que é ela mesma tudo e, no entanto, é apenas Um, mas que deseja revelar-se e transformar-se em um ser espiritual, que é produzido pelo fogo no desejo de amor, na força da luz.” (Mysterium Magnum, VI, 1)
A Totalidade quer conhecer a si mesma, tomar consciência de si mesma, manifestar-se. E essa vontade da Totalidade — que é “como nada” apenas na medida em que coincide com a Totalidade — torna-se Algo, passa para o plano do Ser, do múltiplo, enquanto ilumina seu próprio desejo de aparecer no espelho de sua sabedoria. E aquilo que é absolutamente sem fundamento torna-se o fundamento de tudo o que é manifesto. “Contemplem” — o desejo do Verbo eterno, que é Deus, é o início da natureza eterna e a apreensão do Nada eterno em Algo; é a causa de todos os seres (…). (Mysterium Magnum, VI, 14).
A revelação do Nada é, portanto, a da Totalidade: a do Deus único que é ao mesmo tempo “o bem e o mal, o céu e o inferno, a luz e as trevas, a eternidade e o tempo, o princípio e o fim” (Mysterium Magnum, VIII, 24). A revelação do Vazio é a do princípio da manifestação universal que, como René Guénon também demonstrou, “ao mesmo tempo em que é uno, e até mesmo a unidade em si mesma”, contém a multiplicidade1. Mas esse Deus único — Boehme apressou-se em especificar em uma passagem crucial — “é chamado de Deus apenas de acordo com a luz de seu amor, e não de acordo com as trevas ou de acordo com o mundo externo; embora seja tudo em si mesmo, devemos, no entanto, considerar o grau que diferencia um do outro: pois não posso dizer do céu, ou das trevas, ou do mundo externo, que são Deus. Não há nada que seja Deus, mas há o ser formado e expresso por Deus, um espelho do Espírito que se chama Deus, onde o Espírito se manifesta e, na alegria que tem de si mesmo, brinca com essa manifestação que é seu ser criado. E o ser não está separado do espírito de Deus, mas o ser não compreende a divindade” (Mysterium Magnum, VIII, 25).
“Esta última”, escreve Guénon, “procede inteiramente da unidade primordial, na qual sempre permanece incluída, e que não pode ser de forma alguma afetada ou modificada pela existência dentro dela dessa multiplicidade, pois obviamente não pode deixar de ser ela mesma por um efeito de sua própria natureza (…)”).(Les états multiples de l’être, Paris, Véga, 1932, p. 48. ↩