Magia [GAFO]

GUSTAV MEYRINK — O ANJO DA JANELA DO OCIDENTE [GAFO]

G. Meyrink, L’ange à la fenêtre de l’occident(1927), trad. do alemão, Éd. Retz, 1975, p. 10.; trad. Yara Azeredo Marino

Eu passei o dia examinando os documentos deixados por meu primo e concluí ser inútil esperar ordenar de forma coerente aqueles fragmentos de estudos e aquelas notas tão antigos: não havia nada mais a edificar sobre aqueles escombros! “Leia ou queime”, murmura-me sem cessar uma voz interior. “O para o !”

Que tenho a ver, em suma, com essa história de um tal John Dee, baronete de Gladhill? Que era um inglês entediado e, segundo toda verossimilhança, um ancestral de minha mãe?

No entanto, não pude mandar toda aquela mixórdia ao diabo. As vezes as coisas têm mais poderes sobre nós do que nós sobre as coisas: elas apresentam aos vivos todo o tipo de armadilhas, fazendo-se passar por monstros. Não, não consigo interromper uma leitura que, a cada momento que passa, não saberia dizer por que, cativa-me mais. Do seio daquele caos fragmentário emerge uma forma crepuscular, bela e triste: a de um espírito superior. Um homem desgarrado de forma atroz que brilhou na manhã de sua vida para ver se amontoar as nuvens sobre a sua maturidade: perseguido, ultrajado, crucificado, reconfortado com fel e vinagre; um homem que tocou o inferno, um eleito no entanto, que afinal de contas foi elevado as alturas celestes por ser uma alma nobre, ‘sábio’ audacioso, espírito ardente.

Não, a história de John Dee, descendente de uma das mais antigas linhagens da Ilha de velhos príncipes e condes de Gales, meu ancestral por sangue materno, a história de John Dee não deve soçobrar no esquecimento.

Mas não pude escrever como desejava o que ali vi. Faltaram-me praticamente todas as condições preliminares: a possibilidade de um estudo pessoal e o eminente saber de meu primo em um domínio que alguns qualificam de ‘oculto’ e do qual algumas pessoas acreditam se livrar ao utilizar o termo ‘parapsicologia’. Não possuo, assim, experiência e critérios. Posso apenas tentar, com um cuidado escrupuloso, dar àquele imbróglio de vestígios uma ordem e um plano racional: “Preservar e transmitir”, de acordo com as palavras de meu primo John Roger.

E certo que dispunha apenas de um frágil mosaico. Mas a rachadura de uma ruína não se faz mais emocionante do que uma mansão imponente? Enigmático aquele sorriso nos contornos de uma boca, que desmente a profunda melancolia ao liame do nariz; enigmático aquele olhar fixo sob uma fronte ausente; enigmático aquele brilho de frescor repentinamente rosa sobre um fundo que se esboroa. Enigmático, enigmático…

Isso me custará semanas, senão meses, de trabalho estafante para desvendar, primeira etapa indispensável, essa meada já meio apodrecida. Hesito: deverei fazê-lo? Se eu tivesse uma certeza, se um conselheiro interior invisível me aconselhasse quanto a essa decisão, eu deixaria com plena irreverência toda essa desordem virar fumaça para ‘causar prazer ao bom Deus’.

De mais a mais, impõe-se a mim o pensamento do barão Michel Arangelovitch Stroganof, que está em vias de morrer e não pode mais fumar seus cigarros R12; talvez porque o bom Deus duvida que um homem lhe testemunhe tanta disposição em servir.

Mais uma vez o sonho do rubi. Ocorreu como na noite precedente, mas a sensação de frio devida à descendência do cristal até a minha dupla cabeça não me era mais dolorosa, de modo que não acordei. Essa impressão vinha do fato de que o rubi se apoderara definitivamente de minha abóbada craniana? Não sabia. Sempre acontecia, no instante em que o raio luminoso iluminava ao mesmo tempo as duas faces de minha cabeça. Vi que era aquela criatura com duas cabeças R12; e no entanto um outro: eu me vi, é bem o caso de dizer ‘Janus’, mover os lábios de um dos rostos, enquanto o outro continuava imóvel. E o que movia era incontestavelmente ‘eu. O ‘Outro’ se entregou a longos e vãos esforços para emitir um som, lutando para sair de um profundo sono e pronunciar uma palavra.

Enfim os lábios modelaram um sopro e exalaram a frase a mim dirigida:

R12; Não ordene! Não se sinta capaz! Onde a razão coloca a ordem, provoca uma inversão das causas primeiras e prepara a destruição. Leia, deixando-se guiar pela mão e não semeie as devastações. Leia, deixando-se guiar R12; por R12; mim…

Senti em minha ‘outra cabeça o esforço daquelas palavras, o que, segundo toda verossimilhança, despertou-me.

Estranho meu estado de espírito. O que acontecerá? Um espectro se liberta em mim? Uma miragem nascida do sonho deseja se misturar a minha vida? Eu sou o objeto de um desdobramento de consciência e teria eu me tornado R12; ‘flagelado’? Longe disso, encontro-me em excelente saúde, lúcido, sem a mínima propensão a me sentir ‘duplo’; muito menos ainda constrangido, por quem quer que fosse, a pensar ou agir. Sou dono de minhas emoções, de minhas intenções: sou livre!…

Ainda um fragmento de recordação de minhas cavalgadas nos joelhos de meu avô vem à tona; ele me dizia que nosso gênio tutelar era mudo, mas que um dia falaria. Então virá o fim dos dias do sangue: a coroa não planará mais acima de sua cabeça, mas resplandecerá em sua Dupla Fronte.

‘Janus’ começa a falar? É o fim dos dias do Sangue? Sou o último herdeiro de Hoël Dhats?… Não importa, as palavras gravadas em minha memória têm um sentido claro: “Leia, deixando-se guiar por mim!” E: “A razão provoca uma inversão das causas primeiras”… Que seja, obedecerei à ordem dada; mas não, não, isso não é uma ordem, além do mais recusarei me deixar comandar; isso é um conselho, sim, sim, um conselho R12; um simples conselho! E por que não o seguirei? Portanto, não classificarei. Transcreverei ao acaso o que minha mão apanhar.

Retirei, sem olhar, uma folha da pilha de papel; reconheci a escrita abrupta de meu primo John Roger e li:

Tudo terminou há muito tempo. Mortos há muito estão os homens que aparecem nesses documentos biográficos, com suas cobiças e suas paixões. Em seu , eu, John Roger, ouso agora mexer; da mesma forma eles teriam agido com relação a outros homens que tivessem desaparecido antes deles, como eles desapareceram para mim, agora violador de suas cinzas.

O que está morto? O que é passado? Quem pensou, agiu, outrora, agora é ato e pensamento: tudo o que tem poder vive. Seguramente não encontramos, todos, o que procurávamos: a verdadeira chave do tesouro da vida, a chave misteriosa cuja busca é o suficiente para edificar o sentido e a obra de toda uma vida. Quem viu acima dele a coroa com o rubi? Nós, os descobridores, o que conseguimos achar? Nada além da adversidade inconcebível e a visão da morte, que pelo visto deve ter vencido! Mas está estabelecido que a chave se encontra no abismo das águas tumultuosas. Quem nele não mergulha não a obtém. O último Dia do Sangue não fora objeto de um oráculo para nossa linhagem? Nenhum dentre nós presenciou esse último dia. Devemos nos sentir felizes? Felicitar-nos? E acusar-nos também, sem dúvida.

A figura de duas cabeças não se materializou para mim apesar de rodas as evocações. Não vi o rubi. Assim deve ser: aquele a quem o diabo não virar com violência a cabeça para trás se dirigirá irresistivelmente para a terra dos mortos e não verá jamais a luz se elevar. Mas a quem dentre nós, do sangue de John Dee, o Bafomé então falou?

John Roger

Gustav Meyrink (1868-1932), Terminologia