HERMETISMO — TARÔ
Hans Urs von Balthasar: Prefácio ao livro «MEDITAÇÕES SOBRE OS 22 ARCANOS MAIORES DO TARÔ»
Estranhamente essas “Meditações” escolheram como ponto de partida as velhas figuras simbólicas do jogo de tarô. Evidentemente o autor não ignora o uso mágico e divinatório que é feito dessas cartas. Mas, apesar de não sentir nenhum escrúpulo quanto ao emprego do termo tão complexo “magia”, ele não se interessa, nessas “Meditações”, pela prática da cartomancia. O que lhe importa são unicamente os símbolos ou as quintessências representadas nas cartas e consideradas separadamente ou em sua interdependência; como ele cita várias vezes C. G. Jung, podemos chamá-las (com reserva) de arquétipos. Mas guardemo-nos de interpretá-las como simples dados do inconsciente coletivo respeitantes à psicologia interna — coisa que também Jung não faz de modo absoluto —, porque elas podem ser entendidas tão bem como os princípios do cosmo objetivo, roçando então a esfera daquilo que a Bíblia chama de “dominações e autoridades”.
As origens do jogo de tarô e as relações de seus símbolos com a história do espírito humano (aliás, no decorrer do tempo, a sua representação variou muito) são obscuras. Parece fantasioso derivá-las da sabedoria egípcia ou caldeia; podemos admitir, ao contrário, que foram os boêmios que empregaram e difundiram as cartas. Entre as que foram conservadas, as mais antigas datam do fim do século XIV. Somente pelo fim do século XVIII é que foram estabelecidas as relações atualmente existentes entre os símbolos do jogo de tarô e a cabala (o arqueólogo Court de Gébelin, 1728-1784, foi o primeiro a supô-las) como também entre o alfabeto hebraico e a astrologia. Foi tentada várias vezes a aproximação da ciência cabalística e do tarô com a doutrina católica, sendo o esforço mais vasto nesse sentido o de Eliphas Levi (pseudônimo do padre Alphonse Louis Constant), cuja primeira obra, Dogme et Rituel de la Haute Magie, apareceu em 1854; o nosso autor a conhece bem e substitui seus desenvolvimentos, muitas vezes ingênuos, por uma exposição muito mais profunda. Houve oposições, como se pode ver pela publicação, em 1910, de The Pictorial Key to the Tarot, de Arthur Edward Waite, da “Hermetic Order of the Golden Dawn” — que, em parte, se propunham impedir o uso dos símbolos pelo cristianismo. Mencionemos ainda, entre as muitas tentativas de interpretação, a do teósofo russo P. D. Ouspensky — como nosso autor, imigrante e professor influente e citado por ele, com espírito crítico, em sua obra Un nouveau modele de l’univers — o qual, fiel à linha geral de sua concepção do mundo, comentava os símbolos do jogo de tarô, de um lado, no quadro das religiões orientais e, do outro, no de uma psicologia das profundezas fortemente impregnada de elementos eróticos. Mas para que continuarmos a caracterizar os muitos escritores ocultistas, teósofos e antropósofos que o nosso autor submete à sua análise, recusando a uns como insuficientes e emprestando a outros um pensamento que lhe parece bastante precioso para ser incorporado à sua meditação? Sejam quais forem suas apropriações — trate-se de uma interpretação da Sephirot cabalística ou de pensamentos de Boehme, de Rudolf Steiner, de Jung, de Péladan, de Encausse (Papus), de Philippe de Lião ou de quem quer que seja — não deixemos de observar o ar finamente humorístico com o qual ele colhe, nas margens de seu caminho, toda sorte de pequenas flores para atá-las em seu buquê rico de imaginação. Frequentemente ele cita grandes filósofos e teólogos como Tomás e Boaventura, Leibniz, Kant, Kierkegaard, Nietzsche, Bergson, Soloviev e Teilhard de Chardin, ou poetas como Shakespeare e Goethe, De Coster, Cervantes, Baudelaire e muitos outros; ele usa com desembaraço todos os registros da literatura mundial.
A leitura espiritual fundamental de um autor se revela, entre outras coisas, nas tradições com as quais ele tem afinidade e nas pessoas que ele cita com certa frequência e com veneração afetuosa. Voltam assim, sem cessar, os nomes de Santo Antão, de santo Alberto Magno e de São Francisco de Assis como também as citações abundantes colhidas de preferência nas obras de João da Cruz e de Teresa de Ávila.
Com terna gravidade nosso autor abisma-se na contemplação dos símbolos colocados diante de seu olhar, tira deles sua inspiração e se deixa levar livremente por sua faculdade imaginativa, que sonda as profundezas do mundo e da alma. Se, muito naturalmente, vem-lhe então a lembrança de luzes e leituras antigas, cujo acaso relativo ele não procura ocultar, nada impede que o poder maior de sua visão esteja menos nos pormenores — muitas vezes os caminhos de seu pensamento se cruzam — do que, como dissemos, na certeza inabalável de que, no mais profundo, todas as coisas se tocam e se remetem umas às outras em analogia recíproca, e de que o magnetismo de força unificadora superior domina e submete a si as percepções particulares mais isoladas. Para ele esse despotismo não corresponde ao despotismo humano, vulgar e mágico, ávido de dominar o saber e o destino por meio das forças do mundo, mas a algo muito diferente, que somos obrigados a chamar de “magia da graça” e que jorra com seu encantamento do coração dos mistérios da fé católica. E como esta fé não é e não quer ser mágica, o encantamento remete ao seu conteúdo: a submissão de todas as “dominações e autoridades” cósmicas ao reino de Cristo. O Novo Testamento descreve essa submissão dos poderes a Cristo como processo acabado em princípio, mas continuando até o fim do mundo. Aflora então uma contingência perigosa: a tentativa de se dedicar prematuramente, por curiosidade ou por vontade de poder, às potências cósmicas, em lugar de abordá-las a partir do triunfo de Cristo sobre elas, atitude esta da qual só pode considerar-se capaz, na pior das hipóteses, o sábio verdadeiramente cristão.
É sumamente importante que compreendamos bem essas coisas para fazermos justiça à presente obra, que, sem dúvida, perturbará mais de um leitor. Se o autor conseguiu, de modo tão soberano, entrar com pormenores em todas as nuanças das ciências ocultas, é porque, para ele, elas não passam de realidades penúltimas, verdadeiramente acessíveis somente quando é possível referi-las ao mistério absoluto do amor divino manifestado em Cristo. Ele não entende a revelação cristã como a impressão, possível ou real, entre outros, dos arquétipos subjetivos e objetivos. Esses arquétipos constituem apenas o material cósmico no qual finalmente se encarna a única revelação cristã, ou ainda — uma vez que a encarnação do amor divino é meta final de todos os elementos cósmicos — a ciranda das alegorias e dos esquematismos que anunciam esse acontecimento usando o “espelho e o enigma”.
(…)
A presente obra eleva-se bem acima do nível dessas inúmeras imposturas. Considerada em seu conjunto, ela é somente “Meditação” e se abstém de qualquer indicação concreta que permita praticar as ciências “ocultas” sob a égide da sabedoria cristã. Provavelmente o autor teria sido totalmente incapaz de oferecer indicações gerais desse tipo ao alcance de todas as inteligências. Para ele o importante era fazer obra semelhante à de Boaventura, que, em seu tratado De reductione artium ad theologiam, passando revista a todas as etapas do conhecimento profano teórico e prático, mostrou que todas elas convergem para a encarnação do logos divino e do arquétipo divino para ficarem suspensas dele como de uma cadeia. Poderíamos pensar igualmente na prodigiosa visão do mundo de santa Hildegarda, que, como talvez ninguém mais fez, introduz os poderes cósmicos também (na ótica de então, é evidente) no vasto drama cristocêntrico que se desenrola entre a criação e a redenção, entre o céu e a terra — uma visão do mundo na qual verdadeiramente “ó Horácio, têm seu lugar coisas que ultrapassam teu entendimento escolar”.
O problema de saber em que medida a síntese cristológica seria possível ou comunicável também no que se refere aos domínios intermediários dos quais o nosso autor se ocupa e o diagnóstico pormenorizado dessa possibilidade ultrapassariam de muito tanto o espaço reservado a esta apresentação como a nossa competência.