(Bertram1932)
E até a Genealogia da Moral, em 1887, retoma visivelmente o símbolo düreriano d’O Nascimento da Tragédia, ao falar de um “espírito que só a si mesmo se deve, como Schopenhauer”, um “homem e cavaleiro de olhar de bronze, que tem a coragem de ser si mesmo, que sabe ser independente”.
É um “símbolo de sua existência” que aqui lhe fala, a ele que sempre sentiu precisar de “uma espécie de arte especial”: o símbolo de um “pessimismo germânico” que não é cético nem romântico, mas “reformador”, moralista — “Schopenhauer e o imperativo categórico”, Lutero e seu “não posso agir de outro modo”. “Há uma vontade de trágico e de pessimismo”, diz o prefácio tardio de Coisas Humanas, Demasiado Humanas, “que prova tanto o rigor quanto o vigor do intelecto (gosto, sentimento, consciência). Com esse querer no coração, não se teme nada do que a existência tem de terrível ou incerto; avança-se ao encontro. Por trás dessa vontade, há coragem, orgulho, desejo de um grande inimigo. Tal foi, desde o início, minha visão pessimista — uma perspectiva neutra, ME parece?… Até hoje ME mantenho nela…”
Assim Nietzsche vê, tardiamente, a perspectiva dominante de sua vida. Por trás de seu pessimismo cavalheiresco, há, desde o início, a coragem que não teme o terrível — a Morte — nem o incerto — o Diabo —, mas que os busca, os afirma, os quer. Uma coragem que leva o trágico até o dionisíaco, o pessimismo até a vontade de Eterno Retorno, Schopenhauer até Zaratustra. A imagem dessa coragem, Nietzsche a pressentia em Dürer: pressentia a si mesmo, ao crer ver Schopenhauer. Assim como essa gravura é a única que o acompanha, assim também o acompanha e o domina a ideia da coragem intelectual e espiritual — a ideia de um Templário da Verdade, dessa Verdade que “não mata, mas vivifica”.
“Que é bom? Ser bravo é bom”, pergunta e responde Zaratustra, que glorifica o homem como o animal mais corajoso: “a coragem — com ela dominou todos os animais (e até o animal em si)”. “Mas a coragem é o melhor dos algozes, a coragem que ataca. Ela golpeia até a morte, pois diz: ‘Isto era a vida? Então, avante! Mais uma vez!’”
“Sou, por temperamento, belicoso. Atacar está entre meus instintos”: eis o complemento pessoal que Ecce Homo dá a esse pensamento. Numa carta à mãe, pouco antes de Zaratustra, Nietzsche já se descreve como “o mais corajoso, se não o mais feliz dos mortais”, e chama Aurora de “um dos livros mais corajosos já escritos”. “Três quartos do mal no mundo vem do medo”, diz justamente esse livro, cujos Paralipomena postulam, em analogia completa com protestantes e templários, uma “religião da Coragem”, e onde o autor exige que a ciência se torne mais perigosa, que exija maior espírito de sacrifício: “Quero levar as coisas ao ponto em que seja necessário um estado de alma heróico para dedicar-se à ciência.”
Nietzsche conhece como ninguém as tentações da “Morte e do Diabo” da pusilanimidade — de toda pusilanimidade intelectual. A verdade é, para ele, questão de coragem, e a resposta da coragem. “Nas ciências também tudo é ético”, já proclama Goethe; “não se pode propriamente saber, é preciso sempre agir.”
“Só tardiamente se tem coragem para o que realmente se sabe” — essa frase é uma das mais repetidas, reelaboradas com variações pelo último Nietzsche (encontra-se em Vontade de Poder). O Crepúsculo dos Ídolos diz, em termos idênticos: “Até o mais corajoso de nós raramente tem coragem para o que realmente sabe…” A Brandes (dezembro de 1887), ele desenvolve a ideia: “O que um homem já considera ‘verdade’ ou ainda não, depende, ME parece, antes de sua coragem, da intensidade de sua coragem. (Raramente tenho coragem para o que realmente sei.)” No mesmo ano, a Overbeck: “Se ao menos eu tivesse a coragem de pensar tudo o que sei…” E, mais brutalmente, em Ecce Homo: “Que dose de verdade um espírito suporta, que dose ousa? — esse sempre foi para mim o verdadeiro critério de seu valor. O erro não é cegueira, o erro é covardia…”
Ora, o espírito só tem valor se for martírio positivo, se for luta: “Os homens mais intelectuais, supondo que sejam os mais corajosos, são também os que vivem as tragédias mais dolorosas: mas honram a vida justamente porque é contra eles que ela mais se hostiliza.” (Crepúsculo dos Ídolos). Pois tudo o que é decisivo nasce “apesar”, diz Nietzsche em Ecce Homo, citando a si mesmo.