Marco Pallis — Iluminações Búdicas. Excertos do capítulo “Viver seu karma”
Passemos agora a uma análise mais detalhada do karma, a força impulsora por trás de cada renascimento ou redenção, ou seja, a ação realizada no sentido mais amplo da palavra (incluindo seu aspecto negativo, a omissão), juntamente com seu acompanhamento inseparável, a reação que ela inevitavelmente provoca, sendo os dois estritamente proporcionais um ao outro. O princípio físico de que ação e reação são iguais e opostas é apenas um exemplo dessa dispensação cósmica universal.
Agora, como tudo o mais com que a mente se preocupa, essa lei do karma seria melhor se fosse contemplada de uma forma puramente desapegada e impessoal, como se nós mesmos estivéssemos do lado de fora da Roda da Existência e a observássemos do ponto de vista de um pico elevado e distante. Mas, de fato, esse não é o caso. Estamos profundamente envolvidos em todos os momentos de nossa estada terrena e, consequentemente, na medida em que nos sentimos como “esta pessoa” distinta de todos os seres que, para nós, se enquadram na categoria coletiva de “outros”, não podemos deixar de avaliar esse jogo cósmico que está acontecendo ao nosso redor em termos de mais ou menos, lucro ou perda, prazer ou dor, “bem” ou “mal”, como os chamamos. É isso que explica o fato de que, na vida religiosa, o karma tem sido explicado, na maioria das vezes, em termos de sanção moral, como recompensa por boas ações e punição por más ações, e é assim que a questão é vista, quase sempre, pela mente popular.
Essa visão não é falsa em si mesma; na verdade, ela pode ser salutar. A única falsidade é quando se imagina que essa é a história completa, a primeira e última palavra a ser dita sobre o assunto. A plena consciência das implicações do karma levará a pessoa para fora do círculo de alternativas morais e dos apegos que uma visão pessoalmente tendenciosa inevitavelmente promoverá a longo prazo; no entanto, para o comum dos mortais, a visão do karma como justiça imanente, no sentido moral, não é prejudicial, pois inclina o homem a, pelo menos, levar a sério as lições do karma e aplicá-las em sua vida cotidiana. Todas as leis éticas, em todas as religiões, têm esse caráter; elas são upayas, ‘meios’, de longo alcance, mas ainda assim de escopo relativo, um fato que incidentalmente explica por que as leis morais mais sagradas às vezes não funcionam, de modo que, mesmo nessa esfera, é preciso esperar a exceção ocasional, nem que seja para ‘provar a regra’.
A justiça imanente, em seu sentido mais completo, nada mais é do que o equilíbrio do universo, aquele estado de equilíbrio entre todas as partes que as balanças trêmulas expressam, mas não alcançam visivelmente; mas aqui novamente saímos da perspectiva moral que, embora incluída no panorama geral da “justiça”, não precisa mais receber ênfase privilegiada em vista de um interesse humano específico.
É um lugar comum entre os controversialistas budistas, para criticar o que consideram explicações arbitrárias oferecidas pelas religiões teístas, argumentar que a doutrina do karma, ao explicar as aparentes irregularidades do destino em termos de ação antecedente que leva à sanção presente, é “mais justa” do que outras visões relacionadas aos mesmos fatos. É bom salientar que, uma vez que esse argumento se reveste de uma forma moral, ele se torna tão antropomórfico quanto os ensinamentos sobre “a vontade de Deus” em relação ao pecado, presentes nas religiões cristãs e afins. O uso desse tipo de linguagem e de todos os argumentos que assumem essa forma pode ser justificado empiricamente, como se satisfizesse a necessidade de certas mentes e, nesse caso, não é um lucro pequeno. Entretanto, qualquer simplificação desse tipo deve sempre ser considerada uma expressão de “apologética popular”, em vez de uma consciência profunda do que realmente está em jogo. Não obstante, é um erro rir dessa visão das coisas; se alguém for capaz de ver a falácia por trás do argumento, estará livre para transcendê-la em uma compreensão mais profunda da mesma verdade, sem assumir uma atitude paternalista em relação às almas simples para as quais esse argumento foi um trampolim no caminho.
Até agora, o karma tem sido considerado principalmente em seu aspecto cósmico como o determinante, para os seres, de seu destino. Claramente, quando tomado nesse sentido, o karma só pode ser aceito no modo passivo, uma vez que a natureza da existência de um ser em um determinado mundo é algo que o ser é impotente para alterar, por mais que deseje; nesse sentido, “os cabelos da sua cabeça estão todos contados”. No entanto, ao lado dessa passividade involuntária e imposta, existe a possibilidade de viver o mesmo karma no modo ativo — ou seja, com atenção e inteligência — e aqui a vontade humana, que nos permite escolher esse segundo caminho ou negligenciá-lo, conta decisivamente, já que, sem sua participação ativa, tudo o que temos a fazer é nos deixar à deriva como troncos flutuando na superfície das águas turbulentas do samsara; Mas essa atitude não é adequada para aqueles que, em virtude de sua qualidade humana, já estão no portão da liberdade.
Para que um caminho possa ser justamente descrito como “ativo”, ele deve estar claramente relacionado, sob o duplo título de intenção e método, à promoção da iluminação. Um caminho que não olha para além do samsara, mesmo que alguns elementos ativos possam ser acionados incidentalmente no curso da obtenção de mérito, permanece essencialmente passivo em relação à sua finalidade e, por esse critério, fica aquém.
Para que o karma possa ser utilizado como um instrumento para servir a um propósito maior, várias condições técnicas precisam ser satisfeitas, três das quais são de particular importância, de modo que possam ser a conclusão adequada deste ensaio. As três são as seguintes. Primeiro, deve haver uma autoidentificação consciente com o próprio karma. Segundo, deve haver um discernimento justo sobre o que realmente constitui um “bom karma”. Terceiro, o karma de uma pessoa deve ser reconhecido como o determinante da vocação, do seu próprio dharma específico.