Conformando-se à ata de 1606, Shakespeare, situando totalmente a ação da Tempestade na Itália da Renascença, povoa o céu de divindades antigas, como fizeram todos seus contemporâneos. Assim como eles, põe em cena uma «Providência» e um «Destino» (destiny, Fortune), uma fatalidade singularmente distanciada dos conceitos cristãos. Mas, presta a esses conceitos uma ação especial. Por um lado, com efeito, esta fatalidade se inscreve na astrologia, a conjunção dos astros que influencia a sorte do indivíduo, por outro lado um determinismo metafísico guia nossa escolha, segundo as secretas intenções do céu: «É vós, oh deuses, grita Gonzalo, que marcou de um traço de giz1 o caminho que nos conduziu aqui» (V, Sc. 1, 203).
Ora, para os cabalistas do tempo de Shakespeare, uma «razão suprema» dirige toda coisa, dito de outra forma nosso destino está inscrito de toda eternidade no fato da criação; o que é e o que advém devia ser e advir desde a origem.
O mago Próspero é guiado por esta razão suprema. Sua ação mágica era de toda eternidade inscrita nas conjunções favoráveis, disse; sua sorte cessou de piorar. E não é concebível que não tivesse usado disso, uma vez que o destino marcou de um traço de giz2 todos os acontecimentos que vão se desenrolar.
Quem é exatamente o mágico-astrólogo-reformador Próspero3?
Alguns críticos acreditaram achar em John Dee, o astrólogo de EIizabeth morta em 1608, o modelo do personagem shakespeariano. Lembrem-se de que Dee se fazia conhecer por numerosas obras sobre as doutrinas ocultas e as matemáticas, e por suas evocações dos anjos e dos espíritos4.
De fato, o paralelo entre Dee e Próspero não vai muito longe. Certamente, Shakespeare apresenta-nos Próspero como um mago revestindo sua vestimenta tradicional (magic robes) no momento quando invoca os espíritos, se servindo de livros e da célebre vareta mágica (staff) que, segundo uma regra bem conhecida na alta magia, esconderá sob a terra ou sob o mar, quando irá querer se separar de sua arte. Está bem na mesma indumentária que em um excelente retrato nos mostra John Dee. Mas, era o costume secular de todos os magos, não importa quem o soubesse.
Certamente, Próspero, como Dee, recorre à astrologia para conhecer a hora favorável (2 Cor 6)5, «o astro mais favorável» cuja «influência» se a negligenciasse faria cada vez mais declinar sua fortuna. Mas, esta crença na influência dos astros, que esmaltam toda obra shakespeariana, era, não obstante, um lugar comum em seu tempo e um dos temas favoritos de todas as obras dos ocultistas, desde Trithème e Paracelse à Andreæ e Fludd.
Além disso, Dee recorre a todo um material para fascinar os espíritos: ceras onde são impressos caracteres e figuras, bola de cristal6, todas conservadas no British Museum. Opera exatamente como esses falsos-irmãos que denuncia Agnostus: «maldosos, viciados, magos negros ou nigromantici (que) querem fascinar o diabo com characteri, cartas, figuras, prender os espíritos nos anéis ou cristais». Veremos já como opera Próspero.
Pois Dee não tem nada de santo. Como os mal-iniciados, ele quer tirar proveito de seus conhecimentos alquímicos para fabricar ouro. Deixa-se persuadir por seu médium pretensamente inspirado, que deve compartilhar as mulheres; aceita “ménage” a quatro, o que suscita escândalo e provoca motim. Estamos longe de Próspero; este renuncia a todas as vaidades terrestres, todos os fins terrestres (neglecting worldly ends) (I, Sc. 2, 89) e «se retira» na «solidão» para estudar e descobrir a sabedoria com um só propósito de melhorar sua alma. É por isso que em Milão já, negligenciando o governo de seu ducado, entregou-se às «artes liberais» (liberal arts) ou «estudos secretos» (secret studies), quer dizer à magia branca. Longe de alimentar suas paixões carnais, viveu em uma ermida e recomendava a castidade em termos impressos da mais alta sabedoria.
Como ele procede? Evocando os espíritos inferiores pela palavra específica ou fórmula; evoca Ariel pelo simples pensamento. Se ele traça o círculo tradicional no qual entrarão os humanos sobre quem ele quer agir, é como para os espíritos, à ação da música que ele recorrerá. No lugar do espiritismo, do médium, das bolas de cristal e dos «caracteres», é então recorrida à euritimia universal e também ao poder da teurgia do santo que apela; este poder de tais seres pretende recorrer ao conhecimento dos altos símbolos e das leis do universo encontrados por uma via asceta e contemplativa em comunhão ou em comunicação constante com o céu. Próspero realiza perfeitamente esta definição do teurgo por Jâmblico (O Livro dos Mistérios): «o teurgo, pelo poder das coisas inefáveis, não encomenda mais aos seres cósmicos como um homem se utilizando de uma alma humana; mas, ainda que preeminente na posição dos deuses, usa de ameaças superiores para sua própria essência. Não que deva executar onde lhe torna forte, mas, usando de tais palavras, dá a conhecer em sua extensão, na sua qualidade e na sua maneira de ser, o poder que lhe dá a união com os deuses e que foi procurado pelo conhecimento dos símbolos inefáveis.»
Próspero consagrou sua vida e suas leituras ao conhecimento dos «símbolos» — na alta magia se lhes chama frequentemente «chaves» ou «clavículas», tem da sorte adquirida poder sobre o mundo dos humanos e o dos espíritos; a ciência das leis universais lhe permite desencadear os elementos com o poder de um deus. Ora esse último poder — atribuído a Moisés — passa em magia branca pelo teste por excelência de iniciação perfeita. Tal é para uma ampla parte o verdadeiro simbolismo do romance shakespeariano: suscitando — a fins precisos e benéficos — a tempestade que dá seu nome à obra, Próspero prova que seu saber filosófico não era simples conceito, mas iniciação total com os «poderes» divinos. É porque a Tempestade atingiu, por sua vez, a uma reforma dos humanos, à revelação e à transmissão do maior dos segredos: a essência primordial da criação. Na falta de ter conhecimento desse lugar comum da magia, os comentadores arriscaram-se nas hipóteses as mais engenhosas ou as mais escalafobéticas sobre a significação da peça e de seu título.
[Paul Arnold. Ésoterisme de Shakespeare, traduzidos e anotado por Antonio Carneiro]NT: Atentar para as Falésias de giz : Há noventa milhões de anos atrás, partes da atual costa norte da Europa encontrava-se abaixo do nível do mar. As conchas formadas por calcite extraída da água do mar por sedimentação formaram gradualmente leitos espessos no fundo marinho e se solidificaram em rocha ao longo de milhões de anos devido ao peso dos sedimento. Movimentos tectônicos (Tectónica de placas) posteriores relacionados com a formação dos Alpes elevaram estes depósitos marinhos acima do nível do mar. Não foi por casualidade que foi usado este elemento. ↩
NT: Alusão a frase de “V, Sc. 1, 203” acima citada. ↩
NT: “A Próspero lhe qualificaram de mago ao estilo de Fausto, de científico, de conquistador, colonizador, de erudito professor ou de artista criativo. Ainda que fosse muito fácil ver em Próspero o próprio Shakespeare sobre tudo pelo seu muito citado solilóquio de V.i. 33-57, onde renuncia a sua magia ou arte, creio que as figuras autoritárias como Próspero, Cimbeline, ou Péricles, tem outro referente mais tangível. (p.110).”
Quem é Próspero? Existem bibliotecas inteiras sobre o tema. (p115)
IN: Shakespeare y el teatro renascentista inglés; Josephine Bregazzi; Alianza Editorial, Filología y Lingüística; Madrid, 1999; 239 p.; ISBN: 84-206-5734-4.
Mais informações vide:
1. Source de la Tempête de Shakespeare; Grégoire, Henri; Comptes-rendus des séances de l’Académie des Inscriptions et Belles-Lettres ; 1935 ; volume 79; numéro 1; pp. 66-67.
2. “[http://archive.org/details/shakespeareseso00mzgoog|SHAKESPEARE, ses œuvres et ses critiques]”, páginas 445 e 446
3. Prospero’s Powers: A Short View of Shakespeare’s Last Phase; John O’Meara; iUniverse, Inc.; 2006; 60 p.; ISBN-10: 0595410006
“Structural links are pursued that further connect Prospero’s powers with the mysterious process of selfgrowth that is dramatized in The Chymical Wedding of Christian Rosenkreutz.”
4. The Tempest: A Case Study in Critical Controversy (Case Studies in Critical Controversy) ; William Shakespeare; James Phelan and Gerald Graff Editors; Bedford/St. Martin’s Publisher; 2008 (2nd edition); 422 p.; ISBN-13: 978-0312457525.
“Designed for “teaching the conflicts,” this critical edition of Shakespeare’s The Tempest reprints the authoritative Bevington text of the play along with 21 selections representing major critical and cultural controversies surrounding the work. The distinctive editorial material helps readers grapple not only with the play’s critical issues but also with cultural debates about literature itself.
The second edition includes four new readings, revised headnotes that more helpfully contextualize the critical essays, a portfolio of visual representations of Caliban, and an appendix on writing about critical controversies and The Tempest.” ↩Abel Lefranc, pensando aí encontrar uma prova de sua tese Shakespeare-Derby lembrou de alguns encontros entre o VI Comte de Derby e John Dee por quem o primeiro efetivamente marcou de interesse. Poder-se-ia responder que toda Londres conhecia os trabalhos e livros de Dee e que os matemáticos Harriot e Warner que frequentavam a taverna “A Sereia” dos pintores boêmios de talentos duvidosos, estavam necessariamente familiarizados com suas doutrinas e suas experiências. De fato, Dee era um «escândalo» da Inglaterra, nós o vimos, e todo mundo podia-se informar sobre ele, Shakespeare melhor que ninguém, já que Philip, um dos principais atores de sua trupe, tinha sua casa de campo em Mortlake (aliás, bem perto de Stratford) onde Dee atuou até sua morte. ↩
NT: Alusão a Kairos, ver o “Comentário do extrato segundo da 2a carta de S. Paulo aos Coríntios (2 Co 6,1-10)” por Karl Rahner em francês onde encontra-se referência a Kairos. ↩
NT: Em francês no texto está “boule de verre”, porém pelo texto trata-se de “boule de Cristal”, Ver também Palantir. ↩