Silburn (Hermes2:123-124) – Papel da Graça

A relação entre mestre e discípulo só pode ser compreendida se tivermos em mente a natureza dessa relação. Abhinavagupta distingue a humanidade em duas espécies: aqueles que são “farejados” pela graça e os outros. O problema do mestre e do discípulo surge apenas para os primeiros e, portanto, como uma função da graça: “O Senhor supremo, que eternamente projeta o mundo em sua energia, é a graça, faz com que o mundo emane e reabsorva, é livre”. (Trikahridaya.)

De fato, nesse sistema monista, Shiva, por meio do jogo impetuoso de sua liberdade, primeiro encobre sua própria essência, ocultando-se sob as formas sempre renovadas de sua energia e tornando-se, livremente, um ser limitado e escravizado; é também quem, com a mesma liberdade, dispensa sua graça e se revela em sua verdadeira essência. Quer Shiva mistifique ou conceda sua graça, sua natureza fundamental nada mais é do que graça. Portanto, é o único mestre, a Consciência universal ou o Eu absoluto. Sua energia suprema – a Graça – cuida perpetuamente de todos os sujeitos conscientes e constitui a verdadeira relação entre mestre e discípulo.

É a mesma Consciência que questiona como discípulo e responde como mestre: sob o primeiro aspecto, consciência imperfeita sem clareza, cheia de dúvidas e incertezas (vikalpa), sob o segundo, intensa e lúcida, põe fim a todas as dúvidas (I, 233 e 253 e seguintes). Assim, as aparências de mestre e discípulo em corpos diferentes, por serem construções imaginárias, desaparecem quando um único e mesmo Conhecimento libertador ilumina a ambos.

Não importa que a linhagem dos mestres se estenda infinitamente no tempo; o Guru é um só; quando libera seu discípulo, libera a si mesmo (235).

Shiva, o primeiro dos gurus, assume a forma de vários mestres: divindades, sábios, super-homens e homens; a cada um deles corresponde um discípulo da categoria imediatamente inferior: o discípulo de Shiva é sadâshiva, uma diferenciação mal esboçada dele mesmo; no outro extremo da escala, mestre e discípulo são humanos. Mas, em todos os lugares e sempre, o relacionamento supremo deve ser encontrado em todos os níveis: se o guru for um homem, deve ser considerado como Shiva e o próprio como sadâshiva (I, 273).

A graça parece ser indispensável, pois é quem, ao impregnar o ser humano, torna-o capaz de desempenhar seu papel de mestre e determina os vários métodos de transmissão. O termo guru, que significa “pesado”, é usado por causa do peso da graça, que provoca mudanças significativas e duradouras no discípulo. Sem ela, não pode haver um verdadeiro guru. Se Shiva não conceder sua graça”, diz um tantra, “o guru, apesar de todos os seus esforços, não pode instruir o discípulo e, se pudesse, este careceria de vigilância e não manteria o que recebeu; se mantivesse, perderia o benefício ao se apegar a prazeres passageiros que interromperiam todo o progresso”.

Shiva concede ou retém sua graça sem levar em conta os méritos ou deméritos dos homens ou seu conhecimento ou ignorância. Se for objetado que algumas pessoas se esforçam para se purificar e provar que são dignas, de fato o desejo de se purificar já é um sinal de graça.

Embora a Essência seja uma só, é chamada de graça como um dom gratuito, eficiência, uma força viva que agita o coração e a mente e dá origem ao som, à luz e a outras vibrações. Também é chamada de pratibhâ, iluminação espontânea. Esse é um termo essencial no sistema Trika, que enfatiza o brilho da graça, o súbito despertar do poder divino que está adormecido no coração humano. Na realidade, todo ser consciente está eternamente imerso nessa energia benéfica, mas a captura, usando-a em seu próprio benefício; dessa forma, a separa de sua fonte e a priva de sua eficiência; a limita e individualiza, direcionando-a para fora, submetendo-a a sentimentos e desejos particulares. A energia única se dispersa em múltiplas energias, o corpo cósmico em corpos separados, a vibração suprema (spanda) em movimentos limitados e a vida (prâna) em respirações vitais. A própria energia infinita e indiferenciada – o Eu absoluto – parece então fragmentada e dependente.

Mas, como os seres humanos não podem realmente se separar de sua própria essência, que é composta de graça, podem recuperar a autoconsciência e recuperar sua liberdade original: para conseguir isso, suas energias dissociadas convergirão para seu centro, o Coração. Como veremos, a tarefa do guru é encorajar esse retorno à fonte insinuando-se no corpo do discípulo de várias maneiras: junta a respiração dele à sua própria, para despertar as forças que estão adormecidas dentro dele e permitir que se reúna ao sopro indiferenciado que o reintegrará à vida total; ou penetra em seu coração para provocar as vibrações do Coração universal; ou ainda, misturando consciência à consciência, o torna capaz de reconhecer o Si-mesmo. Esses são os três aspectos do retorno à unidade: a inserção no sopro, o despertar da força vital (kundalinî) e a iluminação.