Universo – Ser Cósmico (Daniélou)

Quando identificamos o Universo com o Ser Cósmico, obviamente não estamos falando apenas do universo físico, mas da totalidade dos princípios universais, do universo integral com seu pensamento, suas energias orientadoras, as leis que regulam seu desenvolvimento e a consciência que precede seu surgimento. O mundo das formas perceptíveis não constitui mais o universo inteiro do que os membros e órgãos físicos do corpo constituem a totalidade do homem.

“Aqueles que veem no Sol apenas uma esfera e ignoram a vida que o anima, aqueles que veem o Céu e a Terra como dois mundos e nada sabem da consciência que os governa, possuem um conhecimento muito limitado do universo. Uma ciência que estuda apenas a parte inerte das coisas e não alcança a vida que as anima, a consciência que as habita, é incompleta e não leva a uma compreensão real e duradoura de sua natureza”. (Vijayânanda Tripâthi, Devatâ-tattva, Sanmârga, vol. III, p. 682.) Há uma vida interior, uma consciência oculta que governa cada aspecto da existência, cada forma da natureza. Várias divindades, que são aspectos da Consciência cósmica, governam os movimentos das estrelas, bem como as funções de nossos corpos. A técnica de introspecção conhecida como ioga parece ter sido uma ferramenta útil para descobrir o mundo cósmico. No entanto, o iogue geralmente não é capaz de expressar sua visão em palavras. O obstáculo que ele encontra quando tenta descrever o Cosmos que viu não é tanto uma dificuldade de experiência quanto uma dificuldade de expressão.

No estado de identificação suprassensível alcançado pelas práticas de ioga, o adepto pode perceber passivamente mundos diferentes do nosso, mais vastos ou mais tênues, mas ele não tem necessariamente a capacidade de dar uma forma mental ou descrever, usando símbolos verbais baseados na experiência humana, coisas para as quais ele não tem elementos de comparação. Aprisionado em seu corpo, o homem não tem nenhum sistema de referência além das impressões que seus sentidos e cérebro lhe comunicam. No entanto, as impressões dos sentidos são descontínuas e enganosas. Somente seu universo interior é verdadeiramente acessível ao homem. É somente por analogia com suas próprias formas que a mente pode descrever o que se estende além de seus limites. O mundo externo é apenas um reflexo, cuja realidade está no espelho que o reflete. É por isso que a formulação do conhecimento só é possível dentro dos limites em que a pessoa que busca expressá-lo possui primeiro um conhecimento articulado de si mesma.

Devido a essa limitação de todo o conhecimento dentro dos limites do conhecimento que o buscador do conhecimento tem de si mesmo, parece que há, em todos os níveis de conhecimento, uma equivalência absoluta entre a estrutura do próprio homem e a estrutura do universo como o homem o percebe ou concebe. Portanto, é legítimo comparar o universo a um imenso homem com um corpo, faculdades e uma mente que o dirige. Os Upanishads, portanto, descrevem o Ser cósmico como um homem com olhos e ouvidos, uma mente e uma respiração vital. Isso pode ser apenas uma analogia, mas não temos como estabelecer uma analogia mais justificada. Por outro lado, podemos descrever nossa própria forma de vida como um universo minúsculo e encontrar em nós mesmos o sol, a lua, a terra e os elementos. Qualquer concepção que possamos ter sobre o homem e o universo é simplesmente um reflexo mútuo de um sobre o outro.

O homem é chamado de universo dividido (vyashti) ou microcosmo (kshudra-brahmânda) (palavra por palavra: o pequeno ovo da Imensidão), enquanto o Ser cósmico é o universo total (sama sht i), o macrocosmo ou “ovo da Imensidão” (brahmânda). O homem e o universo aparecem como dois seres paralelos e semelhantes. Os Veda-s, de acordo com a interpretação tradicional, os comparam a um par de pássaros:

Dois pássaros, bem alados, amigos inseparáveis, vivem lado a lado na mesma árvore (o Universo). Um deles (o ser individual) come o fruto [da ação], o outro (o ser universal) olha, mas não come”. (Rig Veda, 1, 174, 20; Mundaka upanishad, 3, 1, 1; Shvetâshvatara Upanishad, 4, 8).

Assim como o Ser universal, o ser individual é eterno, “nunca nasce, é imortal, perpétuo, antigo, não morre quando o corpo é destruído”. ( Bhagavad-Gitâ, 2, 20.) O corpo do homem é “uma cidade de onze portões na qual habita o consciente sem falhas, o não nascido. Aquele que governa sua cidade ignora o sofrimento e alcança a liberação quando a deixa”. (Katha Upanishad, 5, 1.) O homem, visto de seu próprio ponto de vista, ocupa um lugar central na criação, pois é o único ser moralmente responsável por suas ações, uma responsabilidade que não cabe nem aos deuses nem aos animais. O estado humano é, portanto, a matriz da ação (karma-yoni). As ações e os pensamentos do homem têm um poder criativo semelhante ao das ações e dos pensamentos divinos. Nesse sentido também, o homem se assemelha ao Ser cósmico. “Eu sou o que ele é. Ele é o que eu sou. Ele é o que eu sou. ( Bhagavad-Gîtâ, 9, 29.)

Todos os graus mais elevados do Ser podem ser alcançados por meio de uma ou outra das duas ordens paralelas de manifestação, o macrocosmo e o microcosmo: “O que está aqui é lá, o que está lá é aqui; aquele que vê uma diferença vagueia de morte em morte”. (Katha Upanishad, 4, 10.) O Ser Cósmico, a totalidade de todos os seres, é em si mesmo um ser. Seus elementos constituintes, seu intelecto, sua inteligência, seu espírito e sua mente são os mesmos. Seus elementos constituintes, seu intelecto, seu espírito, são semelhantes aos dos seres individuais. Ele também morre e renasce. Ele é o Universo; o Universo é a sua forma. O Ser cósmico não é um deus pessoal que cria a partir do nada. Ele cria porque criar é sua natureza, sua vida, seu funcionamento, assim como nosso corpo cria corpúsculos sanguíneos, cabelos, várias secreções e digere formas de vida para formar outras.

Como uma aranha que cospe e engole seu fio,
como as plantas que crescem na terra,
como o cabelo que cresce no corpo,
tudo aqui embaixo vem do Imperecível. (Mundaka Upanishad, 1, 1, 7.)

Do ponto de vista do homem, a manifestação do Ser cósmico parece ocorrer em três ordens distintas, mas relacionadas. Uma dessas ordens é a ordem sucessiva, que implica uma forma de duração; a segunda é uma ordem locativa, que implica uma forma de espaço; a terceira é uma ordem perceptiva, que implica graus de consciência e, consequentemente, diferentes planos de manifestação.

Alain Daniélou (1907-1994), Índia e China