SIMBOLISMO — LITERATURA — William Shakespeare (1554-1616)
Excertos do livro de Martin Lings, THE SECRET OF SHAKESPEARE. Trad. Mateus Soares de Azevedo
Shakespeare nasceu menos de três meses após a morte de Michelangelo, e se diz frequentemente de ambos que são dois dos “grandes gênios do Renascimento”. Entretanto, como situar Shakespeare à luz de uma abordagem intelectual que aumenta ainda mais, se isto é possível, o nosso respeito por Dante, mas que diminui bastante nossa estima por vários outros cuja proeminência tem sido inquestionada durante tanto tempo? Os capítulos seguintes são uma tentativa de responder a esta questão mais detalhadamente; mas uma resposta geral pode ser dada imediatamente. Citemos, como pedra de toque, uma síntese magistral da diferença entre a arte renascentista e a medieval: “Quando estamos diante de uma catedral românica ou gótica, nos sentimos no centro do mundo; estando em frente a uma igreja renascentista, barroca ou rococó, nos sentimos apenas na Europa.” (UNIDADE TRANSCENDENTE DAS RELIGIÕES Ora, sem tentar dar a Shakespeare um lugar tão essencial na arte da Cristandade como o que é ocupado pelas catedrais ou pela Divina Comédia, será que não poderíamos dizer que estar presente a uma encenação adequada do Rei Lear não é simplesmente assistir a uma peça, mas sim testemunhar, misteriosamente, toda a história do gênero humano?
Mas esta observação provavelmente não poderia ser aplicada à maioria dos escritos de Shakespeare, e se desejamos formar qualquer juízo do dramaturgo maduro cuja perspectiva conferiu-lhe uma universalidade que é um prolongamento da universalidade da Idade Média, a primeira coisa a ser feita é, no momento, pôr de lado a maioria de suas peças, de modo a não confundir a questão. Poucos escritores, como Shakespeare, podem ter se desenvolvido tanto durante o seu período de trabalho. No fim do século XVI, ele já havia escrito algo em torno de 22 peças; mas de nenhuma delas se pode dizer que represente sua maturidade, embora algumas deem1 de várias maneiras, uma antecipação inequívoca do que estava por vir.
Já não resta dúvida de que aos trinta anos2 ou antes, Shakespeare estava familiarizado com várias doutrinas — algumas verdadeiramente esotéricas, outras meramente ocultistas — que interessaram tão apaixonadamente aos dramaturgos de Londres e outros escritores de então, bem como aos aristocratas que os sustentavam, protegiam e encorajavam, inclusive os dois sucessivos patronos3 dos atores para quem Shakespeare escreveu suas peças e com os quais atuou. E desnecessário dizer que a corrente principal do legado místico da Idade Média era uma corrente cristã; porém, ao final do século XVI, ela foi engrossada por muitas outras correntes — pitagórica, platônica, cabalista, hermética, iluminista, rosicruciana, alquímica. A margem de algumas destas correntes tradicionais estavam ciências tais como a astrologia e a magia, e muitas mentes foram cativadas e mesmo monopolizadas por assuntos secundários desta espécie.
Mas, essencialmente, as tradições não-cristãs coincidiam com o misticismo cristão, a despeito de diferenças de terminologia e perspectiva. Elas se preocupavam, primeiramente, com os meios para purificar a alma de sua natureza decaída e, finalmente, com o fruto desta restauração do estado primordial, a reunião beatífica da alma com Deus. Shakespeare, como Lyly, Spenser, Chapman e Ben Johnson — para falar somente de alguns — estava bem consciente de que o resultado do matrimônio químico do enxofre e do mercúrio, ou do “Rei e da Rainha” (a magnum opus dos alquimistas), é a alma ressuscitada e perfeita, e que, portanto, a obra alquímica é, assim, um primeiro estágio indispensável na via que leva à união mística da alma perfeita com o Espírito Divino. De fato, esta união é o tema do poema alquímico de Shakespeare “A fênix e a tartaruga”, como Paul Arnold demonstrou em seu comentário detalhado; e se alguns objetam que este poema atinge uma maturidade extremamente profunda, que é difícil de ser contada entre as obras dos meados de 15904 essa mesma união — o matrimônio precedido e condicionado pela provação e purificação — é nada menos que o tema de mais de uma das primeiras peças de Shakespeare. Com relação a isto, o leitor deve somente olhar de relance os capítulos bem documentados de Arnold sobre Trabalhos de amor perdidos e O mercador de Veneza ou o capítulo de Jean Paris sobre o “teatro alquímico” em Shakespeare.
O ponto a ser assinalado aqui não é o de que muitas das primeiras peças tracem simbolicamente o caminho dos Mistérios, mas sim que elas eram muito teóricas para serem plena e “concretamente” vinculadas aos mistérios. Na via esotérica, o conhecimento doutrinal tem de ser obtido pela mente antes de ser assimilado existencialmente pelo homem como um todo; e este processo de desenvolvimento reflete-se externamente na ordem cronológica de suas peças, pois uma coisa é fazer uso de uma reunião de símbolos, e outra é entrar totalmente em seu simbolismo.
Para nos fazermos compreender melhor, vamos supor que Shakespeare não tivesse vivido até alcançar sua maturidade ou, em outras palavras, que tivéssemos que julgar sua grandeza tomando como base Romeu e Julieta, Sonho de uma noite de verão, O mercador de Veneza, Ricardo II, Henrique IV, Muito barulho por nada, Como gostais, Júlio César e Noite de Reis, sendo que estas são, provavelmente, as melhores entre as suas primeiras peças. A distância entre esta apreciação e a que nós, felizmente, estamos aptos a fazer, seria completamente diferente de um juiz para outro, mas, em qualquer caso, não poderia deixar de ser bem grande. Pois foi somente após estas peças terem sido escritas, isto é, justamente após a virada do século, que veio uma mudança nítida e permanente, não na orientação, e sim na intensidade. E como se Shakespeare tivesse subitamente se atracado com o universo depois de tê-lo contemplado algum tempo com uma serenidade semidesapegada. Ele passou de sério, que já era, para mortalmente sério. Esta mudança chama nossa atenção especialmente em Hamlet e, exceto por um ou dois rápidos olhares retrospectivos, voltados principalmente para Romeu e Julieta e Henrique IV, o tema de estudo deste livro vai de Hamlet à última peça completa de Shakespeare: A tempestade.
Segundo Fernando Pessoa, Rosea Cruz: Shakespeare, (…), teem escriptas cousas mysticas. Mas elles próprios não as percebiam. Tinham intuições e transcreviam-as, sem as comprehender. É como o doido, que é inct. O inconsciente é o possesso. Por isso é inconsciente.
Romeu e Julieta, por exemplo, Sonho de uma noite de verão, Henrique IV, Como gostais e Noite de Reis. ↩
Em 1594; foi provavelmente neste ano que ele escreveu Trabalhos de amor perdidos e, no ano seguinte, Romeu e Julieta e Sonho de uma noite de verão. ↩
Ver Paul Arnold, Esotérisme de Shakespeare. Mercure de France, 1955, PP. 60-61. ↩
Sua primeira publicação deu-se somente em 1601. ↩