Heinrich Zimmer — FILOSOFIAS DA ÍNDIA
Bodhisattva
Avalokitesvara, o Grande Bodhisattva do Mahayana, é a personificação do ideal supremo do budismo Mahayana. A lenda a seu respeito conta que, após uma série de encarnações eminentemente virtuosas, quando estava por entrar na cessação do nirvana, ecoou um clamor parecido ao som de um trovão, em todos os mundos. O grande ser sabia que era um grito de lamentação que advinha de todas as coisas criadas — rochas e pedras, bem como árvores, insetos, deuses, animais, demônios e seres humanos de todas as esferas do universo -ante a perspectiva de sua iminente partida dos reinos do nascimento. Assim, por compaixão, renunciou à bem-aventurança do nirvana até que todas as criaturas, sem exceção, estivessem preparadas para entrar no nirvana antes dele, como o bom pastor que permite que seu rebanho passe primeiro pela porteira, e só depois passa ele, fechando-a atrás de si.
Enquanto no Hinayana o termo Bodhisattva denota aquele que muito em breve alcançará o estado búdico (por exemplo, Gautama foi um Bodhisattva antes de seu Despertar sob a árvore Bo), na tradição Mahayana o termo designa aqueles sublimes, indiferentes e compassivos seres que permanecem no limiar do nirvana para consolo e salvação do mundo. Pela perfeita indiferença (isto é, ausência de egoísmo) e perfeita compaixão (que é outra falta de egoísmo), o Bodhisattva do Mahayana não experimenta a “verdadeira ou real iluminação” (samyak-sambodhi) do Buda nem passa à extinção final (parinirvana), mas pára na iminência — na fronteira do tempo e da eternidade — e assim transcende esse par de opostos; porque o mundo nunca terá fim; a ronda das eras cósmicas prosseguirá sem descanso; o voto do Bodhisattva, voto de permanecer no limiar até que todos tenham entrado antes dele, significa um voto de continuar sendo como é, para sempre. E esta é a razão pela qual seu voto redime o mundo. Simboliza a verdade pela qual tempo e eternidade, samsara e nirvana, não existem como pares de opostos, porém são igualmente “vacuidade” (sunyata), o vazio.
No culto de adoração popular, invoca-se o Bodhisattva porque ele possui um inextinguível poder de salvação. Sua perfeição potencial está sendo emanada a todo momento, em um ato perene de salvação universal, e ele aparece em formas auxiliadoras, por exemplo, como o lendário cavalo alado de liberação, “Nuvem”, que emancipa as criaturas da escuridão de suas penosas vidas de ignorância. Possui um ilimitado “tesouro de virtudes” (guna-sambhara), acumulado por meio de uma prática prolongada e absolutamente isenta de falhas, através de muitas vidas de “máxima retidão” (paramita). Durante eras, o candidato a Bodhisattva trilhou um sublime caminho das mais especiais e refinadas austeridades psicológicas, cancelando sempre toda ideia e emoção do ego. Deste modo, ganhou aquele “tesouro” inextinguível que, no final, como resultado de sua atitude suprema de renúncia intemporal, tornou-se disponível para toda criatura que sofre e luta no mundo.
O caminho peculiar e especial do Bodhisattva do Mahayana representa o último refinamento espiritual — a parte misericordiosa, por assim dizer da disciplina primordial indiana, o tapas. Este, como vimos, era uma técnica destinada a cultivar no indivíduo um estado de ardente calor psicológico. As energias internas, sistematicamente controladas e retidas, armazenadas dentro do corpo, geravam uma condição de alta temperatura, comparável a uma febre, e conferiam certa soberania sobre as forças do macrocosmo em virtude da conquista das forças paralelas do microcosmo, pois é um fato que toda forma de ascetismo resulta em um tipo próprio de liberdade das necessidades comuns e das consequentes leis da natureza e, por isso, proporciona sua própria bênção de independência. O asceta, em seu florescer, não pode ser reprimido ou frustrado pelas forças do meio ambiente: a natureza, o clima, os animais, a sociedade. Declarando sua força superior, as desafia. Não tem medo e não pode ser intimidado; controla suas próprias reações e emoções.
O único perigo que pode ameaçar esta auto-suficiência é que seja surpreendido ou enganado por alguma reação involuntária, o que poderia precipitar uma explosão não premeditada do concentrado caudal de sentimentos tiránicamente reprimidos. As epopeias e novelas indianas contêm inúmeros relatos de santos que ficam coléricos ante uma pequena perturbação. (Na verdade é um recurso usado com frequência pelos narradores orientais a fim de complicar os enredos.) Os velhos ascetas praguejam impetuosamente contra qualquer pobre inocente que, por acaso, os perturbe em seus exercícios espirituais, deixando escapar a força total de seu extraordinário poder e perdendo, assim, em um só instante, o equilíbrio conquistado a tanto custo. Esta é uma enorme catástrofe, tanto para o homem santo quanto para sua abalada, infeliz, inconsciente — e amiúde encantadora — vítima. Também conta a tradição que sempre que Indra, o ciumento rei dos deuses, sente que sua soberania cósmica está sendo ameaçada pelo aumento do poder espiritual de algum asceta, envia uma donzela celestial incrivelmente formosa, com a missão de embriagar os sentidos do atleta espiritual. Se ela obtém sucesso, o santo, em uma sublime noite (ou até numa era) de paixão, despeja toda a carga de força psicológica que havia procurado acumular durante a vida inteira. A consequência para o mundo é o nascimento de uma criança com dotes fabulosos e, para o homem santo, a destruição de seus projetos de poder.
No caso de um Bodhisattva, as exigências de sua peculiar atitude espiritual são, humanamente falando, tão severas que, se ele não estivesse perfeitamente estabelecido em seu conhecimento e seu modo de ser, o perigo de sua subversão seria quase universal. A tentação está oculta em todos os acontecimentos da vida, mesmo nos mínimos detalhes; todavia, para o Bodhisattva realizado, a possibilidade de recair não existe. Sendo o único ser verdadeiramente desprovido de ego, não sente tentação alguma em afirmar o valor de sua personalidade fenomênica, nem ao menos a ponto de fazer uma breve pausa em seu pensamento quando confrontado com uma decisão difícil. As lendas sobre os Bodhisattva os mostram sacrificando seus membros, sua vida e ainda suas esposas e filhos, para o que a qualquer intelecto normal pareceria uma das menos justificáveis pretensões. As posses que um homem comum (prthag-jana) consideraria como as mais preciosas e sagradas do mundo, o Bodhisattva as entrega imediatamente ante qualquer pedido, ainda que inconsequente ou caprichoso, por exemplo, o pedido de um passarinho assustado ou de um filhote de tigre ante a demanda de algum velho brâmane maldoso, ganancioso e concupiscente.