SABEDORIA DOS PROFETAS — APRESENTAÇÃO DE TITUS BURCKHARDT
Precisemos que o título “A Sabedoria dos Profetas” não é senão uma paráfrase, doravante consagrada pelo uso, do título árabe Fuçûç al-Hikam, que significa literalmente “os engastes das sabedorias”. Esta expressão define menos o conteúdo do livro do que apenas o resume simbolicamente, e não poderia ser compreendida sem conhecimento prévio do simbolismo do qual se trata: al-façç — singular de fuçûç — é o engaste ao qual se incrusta a pedra ou o sinete (al-khatam) de um anel; por sabedorias é preciso aqui compreender os aspectos da Sabedoria divina. Os “engastes” que incrustam as pedras preciosas da Sabedoria (al-hikmah) eterna são as “formas” espirituais dos diferentes profetas, a natureza respectiva de cada um deles, ao mesmo tempo humana e espiritual, que veicula tal ou tal aspecto do Conhecimento divino. O caráter incorruptível da pedra preciosa corresponde à natureza imutável da Sabedoria.
A metáfora do engaste que guarda a pedra preciosa da Sabedoria e se casa ao tamanho dela concerne a natureza humana de um profeta enquanto recipiente da Sabedoria divina; entretanto, este aspecto do simbolismo, que corresponde à aparência humana das coisas, encontra-se compensado e como ampliado pela fórmula que Ibn Arabi adota para os títulos das diversas partes de seu livro: “O ENGASTE DA SABEDORIA DIVINA NO VERBO ADÂMICO”, “O ENGASTE DA SABEDORIA DIVINA DA INSPIRAÇÃO DIVINA NO VERBO DE SETH”, “O ENGASTE DA SABEDORIA DA TRANSCENDÊNCIA NO VERBO DE NOÉ”, etc. Segundo estas expressões, o engaste, quer dizer a forma individual do profeta, é por sua vez contida no verbo (al-kalimah), que é a realidade essencial e divina deste mesmo profeta; com efeito, por sua identificação “ativa” com a Sabedoria divina, todo profeta é uma determinação imediata do Verbo eterno, que é a “enunciação” primordial de Deus. São os “verbos” que contêm os “engastes”, pois é o individual que é contido pelo universal e não inversamente, apesar das aparências humanas. Todo profeta, enquanto homem perfeito, logo se contém ele mesmo, posto que “contém” a Sabedoria divina e que, no tocante a sua realidade interior e supra-individual, ele “é” esta Sabedoria; ora esta contém a humanidade perfeita do Homem-Deus, e é este aspecto das coisas que corresponde à realidade ontológica, sem anular no entanto a “realidade” aparente do ponto de vista humano. Enfim, é preciso não esquecer de adicionar que a humanidade dos profetas que, por definição, é perfeita e “fora de série”, reflete em sua particularidade — o “engaste” (façç) que tem tal e tal forma — tal aspecto ou Nome divino, o que volta a dizer que o profeta se identifica em última análise a este Nome, este “abrindo a via” à Essência divina indiferenciada.
Esta complexidade de aspectos aparentemente contraditórios, integrados em um síntese supra-racional, é característica no ensinamento de Ibn Arabi.
A relação entre o engaste e a sabedoria que ele contém, e da qual ele é por sua vez o conteúdo, prefigura o tema fundamental das Fuçûç al-Hikam, tema que pode se resumir da maneira seguinte: a revelação divina se conforma à receptividade do coração, da mesma maneira que a luz, incolor nela mesma, colore-se segundo o cristal que refrata; o aspecto que a Divindade assume depende portanto de seu “recipiente”. Por outro lado, a Realidade divina sendo ativa e criadora, enquanto que o “recipiente” é passivo, toda qualidade positiva pela qual Deus Se manifesta deve emanar Dele; são portanto os conteúdos reais da Essência divina que determinam a qualidade de um estado contemplativo. Enfim, segundo uma visão mais ampla, o receptáculo, quer dizer o coração do homem, ou mais exatamente seu ser integral e essencial, é ele mesmo uma possibilidade divina: é esta possibilidade permanente e informal, o arquétipo, que “recebe” o mais imediatamente a “Luz” infinita.
Logo a Realidade divina engloba, ao mesmo tempo, o recipiente da revelação e seu conteúdo; só se conhece Ela, conhecendo a lei mesmo de Sua manifestação, de maneira que se distingue Ela de Seus receptáculos sem, no entanto, separar essencialmente e sob todas as relações os receptáculos e a Realidade.
O homem, que é o receptáculo por excelência da revelação divina, deve para conhecer Deus conhecer-se a si mesmo, na sua possibilidade permanente. Ora, ele não se conhecerá a não ser através de Deus: enquanto ele é, ele mesmo, o objeto do conhecimento, Deus disto é o “sujeito”, a Testemunha transcendente; enquanto Deus é o “objeto” do conhecimento, Ele “Se colore” em função do sujeito que O contempla.
Se há no ensinamento doutrinal de Ibn Arabi um sistema qualquer, é aquele de permutação de termos opostos e complementares. Este emprego metódico do paradoxo não deixa qualquer sossego ao espírito do leitor, naturalmente inclinado a fixar-se sobre uma noção definida, “dogmática”, se assim se quer, e o conduz em direção aquilo que Ibn Arabi denomina ele mesmo al-hayrah, quer dizer a “perplexidade” ou a “surpresa” diante daquilo que vai além da ordem racional; este hayrah, diz ele, deve se tornar um constante movimento circular ao redor de um ponto mentalmente inatingível, imagem que lembra os últimos versos da Divina Comédia: “… Tal estava eu quando desta nova visão: eu quis ver como a imagem (humana) convinha ao círculo (divino) e como ele aí se integrava. Mas para isto minhas próprias asas não foram suficientes. Meu espírito foi tocado por um raio, e imediatamente minha vontade se realizou. À alta imaginação (espiritual) faltavam aqui as forças; mas já meu desejo e meu querer giravam, como um roda que é uniformemente movida, pelo Amor que move o sol e as outras estrelas.”
Certas exposições de Ibn Arabi podem parecer incoerentes não somente pela razão que nós acabamos de indicar, mas também porque a inspiração intelectual, ecoando ao mesmo tempo inumeráveis verdades solidárias umas das outras, exerce uma espécie de pressão sobre o recipiente muito estreito que é o pensar discursivo e tende a nele quebrar a continuidade “horizontal”; por uma razão análoga, as epístolas de um São Paulo podem parecer incoerentes. A plenitude intrínseca da sinopse contemplativa, sem medida comum com o raciocínio, produzirá fórmulas sobrecarregadas de significações, enquanto impede de uma certa maneira a construção homogênea e definitiva de um sistema, que seria em todo caso muito limitado para “esgotar” um aspecto da Verdade divina.. Quanto mais as exposições de Ibn Arabi são essenciais, mais elas são descontínuas; o caráter profundamente nômade do espírito árabe, seu poder menos plástico que incisivo, aí parecem ser postos em benefício pela inspiração.
Nós não retornaremos aqui sobre a terminologia da qual este mestre faz uso, pois dela falamos em nosso estudo sobre o Sufismo (INTRODUÇÃO ÀS DOUTRINAS ESOTÉRICAS DO ISLAM, 1955), que se pode considerar a este respeito como uma introdução ao Fuçûç al-Hikam. Podemos também nos referir a nossa tradução parcial de al-Insân al-kâmil de Jili (Do homem universal, 1953), que se apresenta como uma exposição, mais contemplativa e mais explícita, de certas ideias fundamentais contidas nos Fuçûç al-Hikam. Aliás existe entra a linguagem de Ibn Arabi e aquela de Jili a diferença que caracteriza geralmente a distância mental entre o século XII e o XIV: aquilo que o primeiro exprime implicitamente, o segundo o precisa de uma maneira mais articulada, ao custo de uma certa delimitação das realidades.
Como acabamos de ver, cada capítulo dos Fusus al-Hikam é dedicado a um profeta, quer dizer, a um dos profetas mencionados no Corão, começando por Adão — considerado no Islame como profeta — até Maomé que “sela” a profecia universal. A cadeia corânica dos profetas compreende também o Cristo e certos profetas dos antigos povos árabes, como Salih e Hûd, que as escrituras judeo-cristãs não conhecem. A base e o ponto de partida de cada capítulo é uma passagem da escritura, frequentemente uma palavra que o Corão refere a um dos profetas.
Dentre os 27 capítulos da obra, selecionamos aqueles que, por seu conteúdo doutrinal, nos parecem mais importantes. Omitimos capítulos ou partes de capítulos cujo conteúdo é mais específico, ou que comportam exegeses muito difíceis de serem expressas em uma língua europeia; pois a interpretação sufi do Corão se funda frequentemente sobre um simbolismo verbal próprio da língua árabe. Em certo sentido os dois primeiros capítulos, sobre Adão e sobre Seth, resumem neles mesmos toda a doutrina metafísica de Ibn Arabi, sob a dupla relação da manifestação universal de Deus e da realização espiritual.