— Ó meus bons amigos, o que há para wu (de (wu-nien, inconsciência) que deva negar? E o que há para nien que deva estar ciente? Wu significa negar a noção de duas formas (dualismo) e livrar-se de uma mente preocupada com coisas, enquanto nien significa tornar-se consciente da natureza original da Realidade (tathata); pois a Realidade é o Corpo da Consciência e a Consciência é o Uso da Realidade. É a própria natureza da Realidade tornar-se consciente; porque a Realidade tem sua própria natureza, a consciência surge; se não houvesse Realidade, então o olho e o ouvido, e com eles as duas formas e os sons, seriam destruídos. Da natureza própria da Realidade surge a Consciência; enquanto nos seis sentidos há visão, audição, lembrança e reconhecimento, a natureza própria não é alterada por nenhuma condição objetiva de qualquer tipo; a verdadeira natureza se move com perfeita liberdade, discriminando todas as formas no mundo objetivo e interiormente imóvel dentro da Primeira Causa. (Hubert Benoît)
Assim como Heidegger, Houei-neng concorda: a realidade humana não está “no” mundo como um ser vivo ou como uma coisa em meio a outros seres vivos ou outras coisas. A realidade humana é um fenômeno singular, pois nela a realidade se torna autoconsciente. A realidade, como pensada aqui, não é a soma total das coisas que são, nem é nada: é o incondicionado que a consciência revela no centro de todo condicionamento. É o que é vislumbrado pelo olhar que arranha e raspa a afirmação obsessiva e opressiva do sensível. É o que é aberto pela brecha criada pelo olhar enganador da consciência em contato com o mundo.
Mas essa Realidade, essa Pan-Realidade que se deixa vislumbrar a posteriori, revela-se, de fato, rapidamente, ainda mais original: a consciência está apenas reconhecendo “isto” que, de fato, sempre a carregou e a impeliu a pensar sobre ela. É esse “algo” de força pura e impotente que constitui o ser humano a priori. A realidade se torna realidade humana por meio do ser humano. Fundamentalmente, o ser humano não é nada além de pura “re-flexão”, o espelho fundamental no qual a Realidade-Mundo se torna autoconsciente. O ser humano, portanto, deriva sua singularidade dessa passagem surpreendente.
Esse é o evento que nos torna humanos. A priori. Portanto, não são nem os exercícios do intelecto nem os heroísmos da ação que são mais ou menos o fundamento da dignidade humana. Essa dignidade é afirmada na mais humilde vida cotidiana, na medida em que cada ato, cada pensamento, cada palavra é uma afirmação sempre renovada e sempre surpreendente dessa verdade primária de que todo ser humano é o lugar de uma passagem singular do poder anônimo da Realidade-Mundo para o lampejo de autoconsciência por meio do qual a Pan-Realidade chega ao seu próprio conceito.
Não é de surpreender, portanto, que os mestres zen prefiram a “meditação em meio a mil coisas” a qualquer outra forma de meditação. Não há necessidade de “consultar”, “macerar” ou esgotar a mente e as pernas para “perceber” a si mesmo. Em vez disso, devemos começar ficando “atônitos” com o fato de que “algo” inédito está acontecendo em “mim”, e esse é o evento da consciência como o evento pelo qual a silenciosa Realidade do Mundo em sua força tácita se torna autoconsciente.